Play without words
Nota: Para perceberes o texto tens de ver os dois filmes que estão no comentário.
Deparo-me
com a vida em cima de um jogo de xadrez com apenas 1 jogador que podes
ser tu, eu, ou qualquer ser comum. Trata-se de um indivíduo sem rosto
nem qualquer expressão que o distinga, que no meio desta busca
existencial procura o mesmo que todos os mortais: alegria, bem-estar,
conforto, euforia, energia, estabilidade, felicidade, prazer,
necessidade de mudança, sentimentos de culpa, de autopunição que muitas
vezes, para certas pessoas, são necessários para atingirem certos
objectivos. Esta procura é por vezes contraditória, na medida em que os
sentimentos ou objectivos de vida podem ser totalmente incompatíveis,
chocando frequentemente uns contra os outros à velocidade da luz,
deixando então o ser humano absolutamente fragmentado, pois esta busca
exaustiva do ser pode-se dividir em tantas camadas que para os mais
sensíveis, susceptíveis, ou mesmo com uma capacidade de versatilidade
desmesurada, pode levar à perda de identidade ou mesmo à loucura.
Entre todas estas emoções e sensações há uma a que ninguém consegue o escapar por mais que de se esconda: o amor …
Perante este cenário intrigante, fiquei com a maior das vontades de
viajar neste universo misterioso. Como tal, agradeço ao mestre Samuel
Beckett este jogo sem palavras:
AÇÃO:
Caí no tabuleiro com a forma do personagem, o que me deixou desiludida
pois preciso desesperadamente de ser eu própria, sem distorcer nenhum
acontecimento nem manipular qualquer fracção de tempo, mas neste momento
sou um ser comum e tenho de aceitar as regras do jogo. Estou disposta a
jogar limpo. Porém, tenho variadíssimos pontos a meu favor na medida em
que estudei bem a lição.
Depois de uma análise cuidada defronto-me com um variado leque de hipóteses. Não tive acesso a nenhuma explicação sobre o “Play without words”,
porém criei várias interpretações para esta lição de vida que se foca
essencialmente na condição do ser humano, ou seja, nas escolhas que este
faz que determinam o seu destino.
A
personagem entra automaticamente num desafio existencial (Jogo), o que
se comprova com o cenário da ação: jogo de xadrez. Tem como objectivo ou
obstáculo inicial a busca de algo representado em forma de coração e seguidamente num quadrado.
Começarei então pela vertente que considero mais óbvia: Um individuo que procura o amor, paixão ou uma tentativa de
ambos. Entra deste modo num frenesim desmedido: salta freneticamente de
forma a atingir o seu obstáculo. Podemos observar que a própria vida
lhe fornece determinados alicerces, ou seja, os blocos que caem
milagrosamente de cima são uma espécie de ajuda ou facilidade que esta
lhe proporciona. Os objectos são lhe necessários para chegar à meta
esperada e no instante em que consegue finalmente tocar no coração, surge-lhe imediatamente um novo “entretenimento”: o quadrado
do lado oposto. Desta forma, a figura muda de foco e tenta agarrar com a
mesma energia esta “oportunidade”, a sua nova escolha. É importante ter
em conta que este objecto está a um nível bastante inferior em relação ao primeiro,
é portanto bem mais fácil de se atingir, o que poderá representar a
facilidade ou necessidade de escolha de um outro obstáculo que não se
relacione com o lado emocional. Quando a personagem consegue pegar no
fio condutor da segunda premissa, toca ao de leve no coração e termina por cair no chão esmagado pelos blocos. Poderei então evocar o ditado “Quem tudo quer tudo perde”.
Entra
a segunda parte. Nesta fase a “marioneta” concentra-se apenas na
segunda vontade, porque provavelmente se apercebeu que as duas
realidades são incompatíveis. Constrói uma torre e consegue triunfar ao
som do maravilhoso Sergey Prokofiev. É o momento alto da curta. A
personagem atinge o seu objectivo no topo com o troféu de ouro e em seguida volta à plataforma, pousando assim o seu prémio nos blocos iniciais. É então que o tesouro
deixa de brilhar e a personagem se despede de mãos a abanar sem olhar
para trás. O abandono é muito típico do ser humano, ou seja, quando este
atinge algo na sua plenitude, deixa de lhe dar o valor inicial. Estamos
perante a insatisfação eterna da existência. O filme acaba com o coração a cair.
Concluo
portanto, que este pião tenha atingido um objectivo de vida que naquele
momento não era de todo compatível com o lado emocional e terminada a
sua missão tenha seguido em frente para outra busca, outra história.
Criou assim, a sua prioridade neste jogo que não se coadunava com a
primeira e perante este facto não pensou duas vezes, tanto que na última
parte a personagem abandona o seu triunfo ao lado do coração que já era perfeitamente atingível, mas a verdade é que este o ignorou por completo.
Uma segunda interpretação, no meu ponto de vista mais profunda, debruça se sobre a realidade interior versus realidade exterior. A personagem entra no jogo focada numa busca intrínseca. Agora o coração não representa somente o amor mas o ser na sua essência
e então, o jovem hermafrodita pretende desesperadamente chegar a si
próprio, ao âmago do ser, tentado atingir o ponto-chave da existência
que é metaforizado em forma de coração.
Os
blocos surgem igualmente como alicerces. Podem ser interpretados como
inspiração divina, apoio de amigos, família ou mesmo como trabalho
individual, ou seja, valores fomentados como a persistência, ambição e
determinação que nos conduzem aos nossos desejos. Quando o jogador está
prestes a atingir a meta, pois toca no coração, surgem-lhe outras distracções externas e rapidamente se desvia do rumo inicial, acabando por se concentrar nessa outra realidade. Tenta à mesma abraçar os dois caminhos mas estes não se unem, acabando por ser esmagado por tudo o que construiu.
Na
segunda parte, entra em cena como se nada tivesse acontecido, pois é
mais fácil viver um mundo de fachada do que olhar para dentro. Como já
foi esmagado pela falta de senso, pois tentou unir inutilmente as 2
realidades, foca-se somente no mundo exterior
que lhe dá prazer. Aí inicia a sua luta. Vai acumulando placas de
esferovite e constrói uma enorme torre de defesa que o leva à falsa
plenitude da existência. É então que brilha e triunfa, pois supera o seu
objectivo: não olhar a meios para atingir os fins, viver mecanicamente
até conseguir algo que simplesmente o satisfaça sem mergulhar no
mistério de quem é. Neste momento glorioso até a própria música e
luminosidade, ao contrário da minha primeira leitura deste jogo, soam a
falso, anunciando assim um triste presságio da condição trágica do ser
humano.
Depois
de realizar o pretendido, desce novamente para a realidade distorcida,
pois está em cima de um jogo e esquece tudo o que se passou, o que se
comprova claramente com o apagar total da luz do quadrado. Acaba por seguir em frente sem entusiasmo e continua o seu percurso sem hesitar, sem olhar para o coração que já estava tão à mão de semear. Desiste de uma vida profunda e introspectiva e então o coração cai. Assistimos nesta segunda rodada à história da desistência do próprio ser humano.
A
terceira e última interpretação relaciona se com 2 realidades
distintas. Aqui temos uma novidade: São duas personagens diferentes a
participar no jogo sem palavras.
Entra a primeira, disposta a lutar por si, seja pelo amor, trabalho, família, amigos ou por
algum objectivo pessoal ou sentimento que o mova e de facto a vida
vai-lhe dando provas que isso é possível, fornecendo-lhe de igual modo
as ferramentas que já vimos para que este se eleve de forma a
concretizar mais rapidamente o seu objectivo.
Quando está prestes a atingi-lo, distrai-se com algo oposto e desvia-se do foco inicial.
É a constante insatisfação ou ambição desmedida do ser humano que
muitas vezes não consegue respeitar os timmings a que está exposto e por
isso fragmenta-se. Acaba por agarrar o quadrado e cair no chão, pois fez a escolha errada, não aproveitou as oportunidades que a vida lhe deu e desviou-se de si próprio.
Na segunda parte entra uma nova personagem. Este tem à mesma 2 caminhos por onde pode seguir mas foca-se somente num: a busca individual, e então dedica-se a esta escolha de forma a concretizar essa procura sem nenhuma
distracção exterior. Cria assim as suas prioridades e foca se nelas. A
vida também se encarrega de o ajudar mas este próprio constrói com
esforço os meios para atingir os seus fins. É então que chega ao topo da
torre triunfante pois conseguiu realizar o seu objectivo. Desce
vitorioso e fecha um ciclo de vida (apagar do quadrado),
abandonando então o jogo para outro desafio provavelmente mais
avançado. Sai triunfante de mãos a abanar, preparado para crescer e
continuar a superar-se. O coração
a cair poderá simbolizar as tentações que ai estiveram
presentes durante todo o jogo e como foram postas de parte perderam a
sua força ou então o encerrar de um capítulo.
Terminada
a minha leitura quero concentrar-me apenas em mim de forma a ter a
força suficiente para entrar a fundo no universo poderoso de Beckett.
Mudo o cenário e peço ao Alejandro Amenábar que me deixe entrar a no seu filme “Mar adentro” e este dá me a sua permissão. Voo até aquela praia que me faz sonhar e sinto-me finalmente preparada para jogar sem falar.
Descubro centenas de palavras, frases e números espalhados aleatoriamente na areia: ambição, piano, armas, paixão, loucura, aviso, confusão, bondade, intensidade, ordem, intestino, disciplina,
magia, saudade, excentricidade, papoila, argila, certeza, 18, “open
your eyes”, adoro-te, medo, desejo, êxtase, tapete de gato, rosa branca,
personalidade, rabo redondo, gémeos, incógnito, silêncio, lábio, vento,
hora, peixes, frontalidade,
agressividade, tabuada dos 7, Fotocópias, ponte 25 de Abril, amizade,
1937, água, pó de arroz, bateria, ananás, insanidade mental, perdição,
dor, sabor, “no hay banda, no hay orquestra”, determinação, luz, 6, foco, destino, 30, atitude,
"As mãos sujas do sangue das canções", irmã, respiração, "Os teus
olhos são como um aquário", música, dor, dança, Dorian Gray, maturidade, ansiedade, boca de coração, evolução, perda, engano, tango, coragem, sino, caixão, organização,
marca, borboleta, framboesas, barriga, sonho, chuva, limite, “onde
está o corpo morto?”, 4.48 pychosys, sinal, espuma, vida, pássaro,
grito, olhos amarelos, interior, suspiro, “Estará morto o corpo morto?”,
arte, 1992, argolas, tocar, 8, sol do bosque, exaustão, unhas, ficção,
lua cheia, “ Tenho em mim todos os sonhos do mundo”, voz, picada de
cegonha, cidra, vestígio, lágrima, revolta, beijo, “Todos nós nascemos
loucos. Alguns permanecem", riso, viagem, cinema, palco, "Toda dança é
uma substituição do sexo”, teatro, universo, renovação e infinito.
Decifro palavras, enterro palavras, engulo palavras, dispo palavras… Construo uma torre com todas estas ferramentas e visto as palavras que estão de roxo, pois são as que mais preciso neste momento para me equilibrar.
Decifro palavras, enterro palavras, engulo palavras, dispo palavras… Construo uma torre com todas estas ferramentas e visto as palavras que estão de roxo, pois são as que mais preciso neste momento para me equilibrar.
Quando
dei por mim já tinha chegado ao topo da torre…Reuni todas as minhas
qualidades, medos, facilidades e defeitos de forma a fortalecer me com a
minha própria consciência, mas pergunto a mim mesma: “No meio de tantos
significados onde está o amor?” Encontrei a paixão, loucura, desejo,
intensidade, amizade mas o amor não veio ter comigo. “
De
repente, vejo uma enorme onda ao fundo do horizonte com um coração no
centro. Olho para a praia e as fotografias que tirei dos 7 pecados
mortais derretem com o sol. Ao sentir a onda vir na minha direcção
penso: “ Não tenho medo do vento. Tenho medo de te encontrar” e então
explodimos no oceano. Já dentro de mim despedes-te num choro suave dizendo-me ao ouvido: “- Amo-te mais do que apenas mais um dia.”
O jogo acabou. Não sei se venci ou se perdi.
*Ver os vídeos do comentário 09/10/2010