sábado, 9 de outubro de 2010

Play Without Words

Play without words



Nota: Para perceberes o texto tens de ver os dois filmes que estão no comentário.


Deparo-me com a vida em cima de um jogo de xadrez com apenas 1 jogador que podes ser tu, eu, ou qualquer ser comum. Trata-se de um indivíduo sem rosto nem qualquer expressão que o distinga, que no meio desta busca existencial procura o mesmo que todos os mortais: alegria, bem-estar, conforto, euforia, energia, estabilidade, felicidade, prazer, necessidade de mudança, sentimentos de culpa, de autopunição que muitas vezes, para certas pessoas, são necessários para atingirem certos objectivos. Esta procura é por vezes contraditória, na medida em que os sentimentos ou objectivos de vida podem ser totalmente incompatíveis, chocando frequentemente uns contra os outros à velocidade da luz, deixando então o ser humano absolutamente fragmentado, pois esta busca exaustiva do ser pode-se dividir em tantas camadas que para os mais sensíveis, susceptíveis, ou mesmo com uma capacidade de versatilidade desmesurada, pode levar à perda de identidade ou mesmo à loucura.
 Entre todas estas emoções e sensações há uma a que ninguém consegue o escapar por mais que de se esconda: o amor … Perante este cenário intrigante, fiquei com a maior das vontades de viajar neste universo misterioso. Como tal, agradeço ao mestre Samuel Beckett este jogo sem palavras:
AÇÃO: Caí no tabuleiro com a forma do personagem, o que me deixou desiludida pois preciso desesperadamente de ser eu própria, sem distorcer nenhum acontecimento nem manipular qualquer fracção de tempo, mas neste momento sou um ser comum e tenho de aceitar as regras do jogo. Estou disposta a jogar limpo. Porém, tenho variadíssimos pontos a meu favor na medida em que estudei bem a lição.
 Depois de uma análise cuidada defronto-me com um variado leque de hipóteses. Não tive acesso a nenhuma explicação sobre o “Play without words”, porém criei várias interpretações para esta lição de vida que se foca essencialmente na condição do ser humano, ou seja, nas escolhas que este faz que determinam o seu destino.
A personagem entra automaticamente num desafio existencial (Jogo), o que se comprova com o cenário da ação: jogo de xadrez. Tem como objectivo ou obstáculo inicial a busca de algo representado em forma de coração e seguidamente num quadrado.
Começarei então pela vertente que considero mais óbvia: Um individuo que procura o amor, paixão ou uma tentativa de ambos. Entra deste modo num frenesim desmedido: salta freneticamente de forma a atingir o seu obstáculo. Podemos observar que a própria vida lhe fornece determinados alicerces, ou seja, os blocos que caem milagrosamente de cima são uma espécie de ajuda ou facilidade que esta lhe proporciona. Os objectos são lhe necessários para chegar à meta esperada e no instante em que consegue finalmente tocar no coração, surge-lhe imediatamente um novo “entretenimento”: o quadrado do lado oposto. Desta forma, a figura muda de foco e tenta agarrar com a mesma energia esta “oportunidade”, a sua nova escolha. É importante ter em conta que este objecto está a um nível bastante inferior em relação ao primeiro, é portanto bem mais fácil de se atingir, o que poderá representar a facilidade ou necessidade de escolha de um outro obstáculo que não se relacione com o lado emocional. Quando a personagem consegue pegar no fio condutor da segunda premissa, toca ao de leve no coração e termina por cair no chão esmagado pelos blocos. Poderei então evocar o ditado “Quem tudo quer tudo perde”.
 Entra a segunda parte. Nesta fase a “marioneta” concentra-se apenas na segunda vontade, porque provavelmente se apercebeu que as duas realidades são incompatíveis. Constrói uma torre e consegue triunfar ao som do maravilhoso Sergey Prokofiev. É o momento alto da curta. A personagem atinge o seu objectivo no topo com o troféu de ouro e em seguida volta à plataforma, pousando assim o seu prémio nos blocos iniciais. É então que o tesouro deixa de brilhar e a personagem se despede de mãos a abanar sem olhar para trás. O abandono é muito típico do ser humano, ou seja, quando este atinge algo na sua plenitude, deixa de lhe dar o valor inicial. Estamos perante a insatisfação eterna da existência. O filme acaba com o coração a cair.
 Concluo portanto, que este pião tenha atingido um objectivo de vida que naquele momento não era de todo compatível com o lado emocional e terminada a sua missão tenha seguido em frente para outra busca, outra história. Criou assim, a sua prioridade neste jogo que não se coadunava com a primeira e perante este facto não pensou duas vezes, tanto que na última parte a personagem abandona o seu triunfo ao lado do coração que já era perfeitamente atingível, mas a verdade é que este o ignorou por completo.

Uma segunda interpretação, no meu ponto de vista mais profunda, debruça se sobre a realidade interior versus realidade exterior. A personagem entra no jogo focada numa busca intrínseca. Agora o coração não representa somente o amor mas o ser na sua essência e então, o jovem hermafrodita pretende desesperadamente chegar a si próprio, ao âmago do ser, tentado atingir o ponto-chave da existência que é metaforizado em forma de coração.
Os blocos surgem igualmente como alicerces. Podem ser interpretados como inspiração divina, apoio de amigos, família ou mesmo como trabalho individual, ou seja, valores fomentados como a persistência, ambição e determinação que nos conduzem aos nossos desejos. Quando o jogador está prestes a atingir a meta, pois toca no coração, surgem-lhe outras distracções externas e rapidamente se desvia do rumo inicial, acabando por se concentrar nessa outra realidade. Tenta à mesma abraçar os dois caminhos mas estes não se unem, acabando por ser esmagado por tudo o que construiu.
Na segunda parte, entra em cena como se nada tivesse acontecido, pois é mais fácil viver um mundo de fachada do que olhar para dentro. Como já foi esmagado pela falta de senso, pois tentou unir inutilmente as 2 realidades, foca-se somente no mundo exterior que lhe dá prazer. Aí inicia a sua luta. Vai acumulando placas de esferovite e constrói uma enorme torre de defesa que o leva à falsa plenitude da existência. É então que brilha e triunfa, pois supera o seu objectivo: não olhar a meios para atingir os fins, viver mecanicamente até conseguir algo que simplesmente o satisfaça sem mergulhar no mistério de quem é. Neste momento glorioso até a própria música e luminosidade, ao contrário da minha primeira leitura deste jogo, soam a falso, anunciando assim um triste presságio da condição trágica do ser humano.
Depois de realizar o pretendido, desce novamente para a realidade distorcida, pois está em cima de um jogo e esquece tudo o que se passou, o que se comprova claramente com o apagar total da luz do quadrado. Acaba por seguir em frente sem entusiasmo e continua o seu percurso sem hesitar, sem olhar para o coração que já estava tão à mão de semear. Desiste de uma vida profunda e introspectiva e então o coração cai. Assistimos nesta segunda rodada à história da desistência do próprio ser humano.
A terceira e última interpretação relaciona se com 2 realidades distintas. Aqui temos uma novidade: São duas personagens diferentes a participar no jogo sem palavras.
Entra a primeira, disposta a lutar por si, seja pelo amor, trabalho, família, amigos ou por algum objectivo pessoal ou sentimento que o mova e de facto a vida vai-lhe dando provas que isso é possível, fornecendo-lhe de igual modo as ferramentas que já vimos para que este se eleve de forma a concretizar mais rapidamente o seu objectivo.
 Quando está prestes a atingi-lo, distrai-se com algo oposto e desvia-se do foco inicial. É a constante insatisfação ou ambição desmedida do ser humano que muitas vezes não consegue respeitar os timmings a que está exposto e por isso fragmenta-se. Acaba por agarrar o quadrado e cair no chão, pois fez a escolha errada, não aproveitou as oportunidades que a vida lhe deu e desviou-se de si próprio.
 Na segunda parte entra uma nova personagem. Este tem à mesma 2 caminhos por onde pode seguir mas foca-se somente num: a busca individual, e então dedica-se a esta escolha de forma a concretizar essa procura sem nenhuma distracção exterior. Cria assim as suas prioridades e foca se nelas. A vida também se encarrega de o ajudar mas este próprio constrói com esforço os meios para atingir os seus fins. É então que chega ao topo da torre triunfante pois conseguiu realizar o seu objectivo. Desce vitorioso e fecha um ciclo de vida (apagar do quadrado), abandonando então o jogo para outro desafio provavelmente mais avançado. Sai triunfante de mãos a abanar, preparado para crescer e continuar a superar-se. O coração a cair poderá simbolizar as tentações que ai estiveram presentes durante todo o jogo e como foram postas de parte perderam a sua força ou então o encerrar de um capítulo.
Terminada a minha leitura quero concentrar-me apenas em mim de forma a ter a força suficiente para entrar a fundo no universo poderoso de Beckett.
  Mudo o cenário e peço ao Alejandro Amenábar que me deixe entrar a no seu filme “Mar adentro” e este dá me a sua permissão. Voo até aquela praia que me faz sonhar e sinto-me finalmente preparada para jogar sem falar.
 Descubro centenas de palavras, frases e números espalhados aleatoriamente na areia: ambição, piano, armas, paixão, loucura, aviso, confusão, bondade, intensidade, ordem, intestino, disciplina, magia, saudade, excentricidade, papoila, argila, certeza, 18, “open your eyes”, adoro-te, medo, desejo, êxtase, tapete de gato, rosa branca, personalidade, rabo redondo, gémeos, incógnito, silêncio, lábio, vento, hora, peixes, frontalidade, agressividade, tabuada dos 7, Fotocópias, ponte 25 de Abril, amizade, 1937, água, pó de arroz, bateria, ananás, insanidade mental, perdição, dor, sabor, “no hay banda, no hay orquestra”, determinação, luz, 6, foco, destino, 30, atitude, "As mãos sujas do sangue das canções", irmã, respiração,  "Os teus olhos são como um aquário", música, dor, dança, Dorian Gray, maturidade, ansiedade, boca de coração, evolução, perda, engano, tango, coragem, sino, caixão, organização, marca, borboleta, framboesas, barriga, sonho, chuva,  limite, “onde está o corpo morto?”, 4.48 pychosys, sinal, espuma, vida, pássaro, grito, olhos amarelos, interior, suspiro, “Estará morto o corpo morto?”, arte, 1992, argolas, tocar, 8, sol do bosque, exaustão, unhas, ficção, lua cheia, “ Tenho em mim todos os sonhos do mundo”, voz, picada de cegonha, cidra, vestígio, lágrima, revolta, beijo, “Todos nós nascemos loucos. Alguns permanecem", riso, viagem, cinema, palco, "Toda dança é uma substituição do sexo”, teatro, universo, renovação e infinito.
 Decifro palavras, enterro palavras, engulo palavras, dispo palavras… Construo uma torre com todas estas ferramentas e visto as palavras que estão de roxo, pois são as que mais preciso neste momento para me equilibrar.
 Quando dei por mim já tinha chegado ao topo da torre…Reuni todas as minhas qualidades, medos, facilidades e defeitos de forma a fortalecer me com a minha própria consciência, mas pergunto a mim mesma: “No meio de tantos significados onde está o amor?” Encontrei a paixão, loucura, desejo, intensidade, amizade mas o amor não veio ter comigo. “
 De repente, vejo uma enorme onda ao fundo do horizonte com um coração no centro. Olho para a praia e as fotografias que tirei dos 7 pecados mortais derretem com o sol. Ao sentir a onda vir na minha direcção penso: “ Não tenho medo do vento. Tenho medo de te encontrar” e então explodimos no oceano.  Já dentro de mim despedes-te num choro suave dizendo-me ao ouvido: “- Amo-te mais do que apenas mais um dia.”
O jogo acabou. Não sei se venci ou se perdi.





*Ver os vídeos do comentário                                                                                       09/10/2010

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Quando Chegará A Hora?

 Um dia dou-te a mão e viajamos pela linha do eléctrico até ao mar vermelho a fazer a tabuada dos sete de trás para a frente as vezes que forem necessárias para provarmos a nós próprios que não enlouquecemos por amor. Caso algum esteja prestes a desistir, damos de novo as mãos e os números sairão da nossa boca para nos indicarem o caminho. O oito não terá de ser sublinhado vezes sem conta para não ser esquecido, pois já o engolimos a meio da jornada. Quando chegará a hora?








Inspirado no vídeo que está no comentário                                                                               07/10/2010
                                                                                                                                       

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Rapaz Cem Por Cento Perfeito



 Numa bela manhã de Maio, a caminho do teatro onde trabalho, cruzei-me com o rapaz cem por cento perfeito ao passar por uma pequena rua do Príncipe Real. De repente, o meu corpo ouviu um som desconhecido e explodiu de energia deixando-me com a pele mais arrepiada do que nunca. Mais feliz não poderia ter ficado, pois sempre esperei por esta sensação de reconhecimento do que quer que fosse. Há quem diga que são as almas que se reencontram...talvez possa acreditar depois disto. Por outro lado fiquei bastante confusa, porque não me lembrava bem como era o rapaz e, perante isto, como poderia saber que tinha estado a quinze metros de distância do rapaz cem por cento perfeito para mim? O meu coração tinha a certeza que era ele e isso bastava-me. 
Nunca criei nenhum protótipo de homem ideal. Tenho amigas que deliram com os louros, altivos, de nariz fininho e queixo delicado. Outras preferem os morenos de olhos claros, encorpados, com traços carregados e mãos grandes. Muitas apontam um foco para os galantes que as enfeitam com brincos de diamantes e existe ainda as que acreditam apenas no amor e numa cabana.
 O rapaz era novo, não tinha mais do que 20 e tal anos. Estava vestido com uma camisola preta, calças de ganga e tinha um sinal no nariz. Apercebi-me que estava apressado pelo seu andar em grandes passos crescentes, como a batida de um relógio de cuco, mas mesmo com o seu andar descontrolado parecia uma criança sonhadora. Passou ao meu lado, atravessou a rua sem olhar e desceu em direção a oeste sem deixar qualquer rasto. Todas as suas marcas foram levadas com a brisa daquela manhã de primavera como uma estrela cadente que se despede suavemente do céu. 
 Não me recordava de nenhum traço do rapaz sem ser do sinal. Não sabia qual era a sua cor e formato de olhos, nariz, lábios, cabelo, mãos, tamanho e postura. Nesse preciso momento, apareceu-me uma voz masculina a sussurrar que era o homem cem por cento perfeito para mim. 
 Passei por várias fases, desde ficar encantada com tais palavras, a enervar-me com os sons repetidos, até já não aguentar mais e querer expulsá-la de mim, mas não me abandonou.
 De regresso a casa, olhei para todos os recantos da cidade para ver se o encontrava de novo envolto na luz dourada do final do dia, porém não tive qualquer sinal.
 Não consegui jantar, nem dormir um segundo com os nervos inquietantes que se instalaram no meu corpo. 
 No dia seguinte, fui para mesma rua com um vestido branco esvoaçante na esperança de o encontrar mais uma vez e não falhei: vi o novamente a passar de cabeça para baixo e com um passo atordoado.
 E assim foi durante o mês de Maio, todos os dias à mesma hora ficava naquele local e via o passar. Por vezes falava ao telemóvel, outras bocejava e também cantava, mas sempre sem olhar para mim nem para ninguém. Fazia de tudo para captar a sua atenção: levava vestidos coloridos às flores, pintas, riscas e quadrados. Decorava-me com inúmeras flores, fitas e chapéus. Enfeitava-me com colares de penas, conchas e bolas de todos os tamanhos. Vestia mini-saias, calções curtinhos, calças justinhas no rabo e botas altas. Tudo isto para ver se conseguia um só olhar, mas não tinha sucesso: às 9:45 lá passava o jovem a voar sem se desviar dos seus pensamentos. 
 Certo dia, para além deste Carnaval, levei um cestinho com sumo de laranja,  línguas de gato, merendas mistas miniatura, scones com doce de framboesa e cerejas para tomarmos o pequeno-almoço, mas não tive coragem de o convidar. Quando o via caminhar em linha reta, um misto de medo e adrenalina tomavam conta do meu corpo. Por um lado, apetecia-me interrompê-lo e dizer-lhe tudo o que estava a sentir, mas por outro, achava que não fazia sentido.
 No dia seguinte, levei um caderno com textos meus para lhe dar, mas fiquei de novo presa ao chão sem reação. A vontade de falar com ele crescia de dia para dia, mas o que é que lhe poderia dizer? Imaginava centenas de vezes as minhas primeiras palavras:
 “- Bom dia. Posso roubar-te meia hora do teu tempo para termos uma pequena conversa?”

Péssimo. O mais certo seria pensar que estava a fazer um daqueles inquéritos de rua.Aliás, nunca me sairia uma frase desta género.

“- Desculpa, por acaso sabes dizer-me como vou para o Bairro alto?”

Igualmente terrível... O melhor mesmo era ser sincera e dizer-lhe a verdade:

“ - Olá, chamo-me Francisca. Passas-te por mim há uns dias nesta rua e soube de imediato que és o rapaz cem por cento perfeito para mim. Segui-te e vi que trabalhas na loja de cinema ao virar da esquina. Desde esse dia que te espero todas as manhãs no mesmo sítio sem conseguir dizer uma única palavra e agora que ganhei coragem, quero que faças parte da minha vida, mas não te sei explicar porquê.”

Não me teria levado minimamente a sério. Pensaria que era uma desequilibrada que só o tinha achado atraente. Não podia ter este discurso.
  Imaginava constantemente que tudo seria bem simples. Depois de conversarmos um bocado tomávamos o pequeno-almoço no “Pão de canela” na praça das flores. De seguida, iríamos para onde a vontade nos levasse sem tempo nem limites. A verdade é que este processo nunca poderia ser tão rápido, mas a vontade de o agarrar e colar a mim era avassaladora.
  No final do mês, cheguei à conclusão que era insustentável e demasiado irreal estar a alimentar esta situação. A verdade era que o que estava a sentir condicionava tudo à minha volta, afetando claramente a minha vida. Resolvi escrever-lhe esta carta:

Querido rapaz cem por cento perfeito,
Preciso de me encontrar contigo para saber quem és. Se concordares, combinamos às 14.30 na esquina da loja onde trabalhas.
Um beijinho
Francisca

 No dia seguinte, acordei estranhamente calma. Tinha imaginado este momento centenas de vezes, desde a forma cuidada como iria vestida, até ao mínimo pormenor de todo o meu discurso, mas optei por ir o mais simples possível: Camisola branca e calças de ganga.
 Às 14h25 lá estava eu no sítio combinado, impávida e serena, como já não me sentia há muito tempo. Reparei, inclusivamente, que não me tinha penteado, pois a parte de trás do cabelo, junto à nuca, estava ainda com as marcas evidentes de quem se acabara de levantar e mesmo assim não me preocupei. Vi o rapaz a passar por mim quando menos esperava e não me movi, mas senti-me feliz, pois naquele segundo descobri que tinha conseguido ganhar, finalmente, a coragem necessária para concretizar tudo o que tinha ficado suspenso no ar.  
 Quando dei o primeiro passo com a carta na mão, aconteceu o inesperado: De repente o rapaz olhou para mim fixamente. Nunca tinha estado com ninguém tão marcante. Era moreno e tinha os olhos rasgados, castanhos-escuros. Parou e ficou imóvel a falar comigo em pensamento. Durante minutos permanecemos desta maneira e deu para reparar em todos os seus sinais, cicatrizes e expressões. O sinal do nariz era o que mais gostava nele.
Olhava para mim imóvel, mas eu conseguia vê-lo a dançar ligado à terra com gestos profundos e uma agressividade libertadora que me rasgava a cabeça.
 Naquele momento, tenho a certeza que me estava a dizer que era a rapariga cem por cento perfeita, mas, inesperadamente, virei costas. Primeira vez, fiquei com dúvidas se tudo aquilo era real ou se seria antes a invenção de uma sonhadora que precisa de colecionar emoções.
 Dessa vez, fui eu que desapareci sem deixar qualquer rasto e tenho a certeza que ficou à minha procura no meio da multidão, pois o eco da sua voz era gritante. Porém, precisava de me recolher para perceber esta história.
 Quando atravessei a estrada, fui brutalmente atropelada por um homem que tinha sido despedido nesse dia. A carta caiu no chão e voou para longe.
 A minha última imagem foi a do rapaz cem por cento perfeito a entrar nos meus olhos, cheio de medo e esperança e, foi então, que desejei alterar a ordem natural do destino e voltar aquela rua para o beijar loucamente e fazer parte da sua cicatriz para sempre. Se o tivesse enfrentado, talvez tivesse vivido a história da minha vida em vez de entrar sem esperança de vida na ambulância.
Antes de perder a consciência, soube tal e qual o que lhe poderia ter dito, contando uma história que começava com “ Era uma vez” e acabava com “ Uma história muito triste, não achas?”

“ Era uma vez um rapaz e uma rapariga que viviam num país distante. Eram muito diferentes, mas ambos acreditavam piamente que, algures no mundo, existia o rapaz e rapariga cem por cento perfeitos para eles. Sim, acreditavam num milagre. Esse milagre tornou-se realidade.
  Certo dia caminhando por uma estrada encontraram-se os dois a meio caminho.

- Incrível - disse o rapaz.  A tua cara sempre esteve algures em mim .

- Podes achar estranho – disse ela - mas tenho a certeza que és o homem cem por cento perfeito para mim.
Sentaram-se os dois num banco e estiveram horas a trocar confidências e juras de amor. Porém, uma pequena dúvida instalou-se nos seus corações ingénuos que nunca tinham amado verdadeiramente. Era possível viver esta história de imediato sem medos e inseguranças ou seria rápido de mais?

Vamos pôr-nos à prova - disse o rapaz - se de facto formos feitos um para o outro o destino não nos irá separar. Sugiro que cada um vá para seu lado.

Sim, quero fazer isso - respondeu ela – Sei que nos iremos cruzar novamente.

E foi assim que os dois se separaram e foi cada um para seu lado; ela partiu em direção a oriente e ele rumou a ocidente. Aquela prova, contudo, revelava-se perfeitamente inútil, aliás, nunca a deveriam ter posto em prática pois o seu encontro já tinha sido um verdadeiro milagre.
 A verdade é que tiveram anos sem se ver e com o passar do tempo chegaram à conclusão que nada daquilo tinha sido real, que talvez não passasse de um sonho lúcido e foram apagando lentamente aquele encontro dos seus corações.
O tempo passou a uma velocidade estonteante.
Numa bela manhã de Outubro, 20 anos depois, o rapaz caminhava calmamente pelas ruas da cidade, vindo de oeste em direção a leste, à procura de um café para tomar o pequeno-almoço, ao mesmo tempo que a rapariga percorria a rua, mas no sentido de leste para oeste. Cruzaram-se a meio caminho. Por um breve instante, os seus corações abraçaram-se de novo.

-  Continuo à tua espera – Pensou a rapariga.

Consigo ouvir-te Confessou ele ao seu pensamento.
Contudo, a coragem de prenunciar tais palavras evaporou-se naquele bonita manhã. Passaram ao lado um do outro sem trocar qualquer palavra e desapareceram entre a multidão em direções opostas, para sempre.”
Uma história triste, não achas?
Sim, era o que te devia ter dito.


Adaptação do texto "Rapariga cem por cento perfeita", de Haruki Murakami                                        



Louise Michel


  Hoje seria, aparentemente, um dia normal, com a mesma luz de salpicos claros de todos os domingos dourados, mas acordei com a tua voz nos pés, e a minha cama transportou-me para um universo esquisito.
 Respirei e deparei-me com 3 instalações gigantescas numa sala quadrada com uma luz morta...
 Chamei-te com as flores azuis turquesa que me deste no último beijo e sorriste suavemente em meia lua. Não te puxei, mas também não me quiseste dar a mão, ficaste no início da sala a apontar para o fundo da sala. Foi então que caminhei por um corredor estreito e nublado, cheio de gritos desesperados, com inúmeros recantos do meu lado esquerdo, que me contaram histórias da minha vida que passaram por mim sem eu as engolir.
 Fechei os olhos com a única chave que estava no ar porque tive medo, mas o vento com que me tens envolvido entrou naquele local e despiu-me para me sentir inteira. De repente, fiquei com os pés cozidos aquele tecto cinzento cheio de buracos, sem conseguir sequer gemer. Por baixo de mim, em linha recta, estava uma mulher francesa que me chamou com palavras violentas. Os seus olhos negros, carregados de raiva e melancolia, colaram-me ao seu cérebro onde estava a decorrer um funeral num dia cinzento. Aproximei-me. Os padres faziam uma orgia com os cadáveres, enquanto os familiares se devoravam uns aos outros. O meu coração não te chamou, mas consegui sair por um dos seus fios de cabelo branco, pois tinha a tua voz constantemente no meu pensamento...
 Louise Michel, era o seu nome. Com 54 anos estava condenada a uma vida altamente formatada pela sociedade, viciada na rotina castradora do ser humano, na solidão e na total ausência de emoções. Foi assim que a realidade cruel deu à luz esta pobre criatura no labirinto do Minotauro, onde Teseu a violava desde os 3 anos.
 Os 2 ecrãs projectados que me elevavam, relatavam a história da sua vida em fragmentos diferentes, mas o tempo era uno. O terceiro, estava nas minhas costas a morder-me o espírito e, foi nesse momento, que finalmente chegaste no vento dos meus pensamentos e me fizeste descer novamente por umas escadas em caracol. Deixaste-me sozinha para me despedir da mulher. Chamei a, mas não se virou para trás.
 Com o teu cachecol,aniquilei os padres perversos e a população esganada pela sua própria tristeza. Peguei na chave de oxigénio e matei Teseu . Foi então, que Louise e o Minotauro fizeram do labirinto um lugar sem medos. Reza a lenda que aprenderam a ser felizes.



                                                                                                                                                   06/2010

Várias Palavras


  Hoje é o dia de ME começar a descobrir, de perceber que estou a construir um puzzle enormíssimo de mim própria...
  Á medida que vou encaixando as peças, converso com as mesmas e acontecem fenómenos bizarros...Há várias que se colam sem eu as juntar e que partem de barco para Veneza a chorar lágrimas de ouro, cantar gotas de vinho e a fazer amor dentro da lua cheia. Umas dizem-me que ficarão por tempo indefinido, mas com a promessa de que voltarão com barrigas de sabão. Outras encaixam, mas ficam mudas e amnésicas, enquanto as gagas assumem uma atitude criminosa e desfazem as vizinhas com balas de canhão, por isso fica sempre uma história suspensa. A mais pequenina dorme no meu quarto e ontem, já cheia de sono, sentou-se no meu dedo e perguntou-me:

 "- Quem és tu? Ontem tinhas dois elásticos na boca e hoje estás a sorrir... há segundos estavas com um vestido de veludo cor de vinho e um arco-íris despiu-te sem dares conta. Como te chamas? Porque não entras dentro de mim?" 

 Então, transformo-me em vento, e começo a declarar aos quatro cantos do universo: 

 "- Olá, sou a Francisca. Por vezes, deixo partes de mim em recantos escondidos deste planeta que facilmente se derretem ou voam à velocidade do meu coração. É simples, só quero ser feliz."

 Ultimamente... Bem, as palavras estão neste momento espalhadas num labirinto incerto... As mais novas querem estar num parque a andar num baloiço amarelo em forma de berço e descer num escorrega de penas. Não conseguem parar de brincar com os patos roxos com contornos picotados, dar pão aos pombos e fazer desenhos de cera com os peixes. As mais tímidas escondem se na asa do pombo ferido que vimos hoje e seguem no em direção ao lago. Foi assim que morreram inesperadamente com o mesmo, que já tinha desistido de voar, porque o mataram mentalmente, ou porque, simplesmente, estava cansado de si próprio. Porém, não me quis revelar o motivo, pois estava ocupado a estruturar a sua morte. 
 Começou por caminhar em círculo incerto à nossa volta, talvez para sentir um certo conforto no meio da respiração, mas expulsámo-lo suavemente com gestos de dança. Não demorou muito tempo para que começasse a caminhar e foi assim que desapareceu entre as ervas sem olhar para trás... O seu espírito, que ainda estava entranhado nas penas sujas e frágeis, chamou-me e sentei-me na água sem cair. Quando o vi descer, com os olhos sem esperança, puxei o de imediato, e foi então que me disse a primeira palavra, que foi, por sua vez, a última da sua existência na terra:
"- Neste momento não quero a tua mão. Traz-me de novo a vida. Abandona- me para que me possa encontrar". 

Respeitei o seu pedido e vi o desaparecer lentamente com as palavras que não tinham bóias. Ficaram umas bolhinhas à superfície que a minha respiração de sangue absorveu em segundos. O arco-íris que me despiu, saiu de baixo de água com 3 sinais em forma de estrela que me roubou da anca para servir de ponte ao seu espírito, e a ave caminhou livremente até ao céu.
  As palavras mais velhas querem dançar freneticamente num cubo de gelo até entrarem por mim em fila indiana. As palavras que tenho agora no meu peito não me deixam continuar a escrever e falam por si: Será que a paixão pode aparecer num dia de chuva sem ficar no teu cabelo encaracolado? Olho para ti, que não existes ainda, pois só te imaginei, e entras na minha boca a tocar guitarra, mas por vezes ficas na poltrona do meu lábio a dizer-me adeus com os olhos e segues o teu caminho sem olhar para trás. Será que ainda não te posso ter porque tenho de me centrar? A peça mais pequenina deitou-se novamente ao meu colo e não a quero acordar com mais palavras.





                                                                                                                06/2010