domingo, 18 de agosto de 2013

Meia-Noite (1)

Caro leitor,

 Não sei se é o termo mais indicado para me dirigir a si. Talvez "Querido leitor" ou "Pessoa a quem vou abrir o meu coração", seria, a meu ver, o mais apropriado. Ao longo do tempo, aprendi a pôr de parte certas formalidades, já tive as que me bastassem nesta vida, por isso deixo isso ao seu critério.
 Tenho de ser totalmente verdadeiro com quem tem a enorme disponibilidade interior para ouvir um desconhecido, portanto, aqui vai: nunca escrevi nada sobre mim em 80 anos de existência. É verdade, nem num simples diário, quanto mais para uma revista. Confesso que estou um pouco atrapalhado, por isso peço desculpa se não me expressar como manda o protocolo.
 Começo por dizer algumas coisas a meu respeito. O meu nome é Frederico e a minha cor preferida é o preto. Sou animado e muito persistente. Sempre fui viciado em fazer longas caminhadas/corridas, em jogar e ver futebol. Hoje em dia, com a minha idade, já é mais complicado, mas continuo a fazer os meus passeios matinais e a assistir religiosamente aos jogos da minha equipa e aos que me interessam. Apesar de ser um homem dos números tenho uma imaginação muito fértil: gosto de ouvir conversas de desconhecidos e ir para casa  magicar o final da história e de escrever palavras de amor com línguas de gato. Vou contar-vos algumas das minhas manias: tenho um hábito desde que me lembro de existir: quando estou aflito para ir à casa de banho, baixo as cuecas ainda no corredor. Não gosto nada do barulho da areia seca quando faz aquele ruído fininho, nem de lavar o espremedor de laranjas. Desde pequeno que odeio a sensação de dormir com alguém sem lhe tocar na pele, ou seja, de me enfiar no lençol debaixo e da outra pessoa ficar no de cima. Adiante, adoro comer. Sou viciado em queijo e ice tea e não passo sem os meus 2 cafés por dia. Odeio feijão verde. Quando era criança queria ser carteiro.  No meu mundo imaginário não havia profissão mais emocionante. Ainda me lembro da minha mãe me perguntar: 

"- Meu querido, diz-me uma coisa, porque queres tanto ser carteiro?"
"- Mãezinha, vou revelar-te o motivo deste sonho, mas não podes contar a ninguém! Jura, jura sem figas! Quero muito ler às escondidas as centenas de cartas que me irão parar às mãos para depois poder juntar os apaixonados que não se veem há anos ou mesmo os que não sabem que vão fazer parte da vida um do outro. Também vou ajudar muitos velhinhos que não têm dinheiro a pagar as contas, denunciar os bandidos malvados e dar boas notícias a quem mais precisa. E depois, sabes o que vai acontecer mãe, sabes? Com todas estas aventuras vou escrever o livro mais incrível à face do planeta e tornar-me-ei o menino/ homem carteiro mais feliz do mundo." 
 Lembro-me como se fosse hoje do seu sorriso nesse dia. Tenho muitas saudades da minha mãe. Muitas.
Apesar deste sonho de criança, a tradição de família foi soberana e vestiu-me com uma bata branca. Acabei por me tornar num cardiologista conceituado.
  Em relação a amores... Nunca fui mulherengo, aliás, não tenho a menor pachorra para aturar os dramas existenciais e forçados da esmagadora maioria das mulheres (querida pessoa do sexo feminino que está a ler atenciosamente as minhas palavras, não me tome de ponta, estou a ser verdadeiro). Apaixonei-me pela minha mulher, Madalena, o grande amor da minha vida, depois de uma longa amizade. Realizei o seu sonho de adolescente, embora já tivéssemos 30 e dois anos: casar às escondidas numa igreja pequenina no Alentejo, e as testemunhas foram o padeiro e a costureira da aldeia.Tivemos dois filhos maravilhosos, o Jeremias e a Alice, os nossos grandes amores.
 Não me vou alongar muito mais nas descrições porque não quero correr o risco das minhas palavras serem atiradas para um caixote sem ter dito o principal motivo desta carta.  
 No dia em que soube que a minha mulher tinha um cancro fulminante no intestino, o meu mundo desabou. Porém, sempre me mantive crente de que tudo iria correr bem. Durante muito tempo alimentei o meu coração e o juízo com este pensamento. Não faltei a um único tratamento de quimioterapia, fiz questão de ser o seu único companheiro durante todo o tratamento. Sempre que entrávamos no carro dizia-me:

"- Meu amor, vai tudo correr bem. Estamos juntos e isso para mim é tudo." 
 Durante o tratamento, pedia-me para lhe contar histórias. Gostava de me ouvir falar da nossa vida, dos momentos em família, dos tempos da faculdade e dos meus disparates em criança. Mas houve um dia, já na reta final do tratamento, que me pediu uma coisa diferente:

"- Querido, gosto tanto das tuas histórias, sabes que são o que me dão mais alegria. Mas hoje vou pedir-te algo diferente. Conta-me alguma coisa da tua vida que desconheça. Um segredo teu que nunca me tenhas contado ou qualquer coisa que me possa ter escapado."

Fiquei sem palavras. Sempre fui um homem sincero. Permaneci em silêncio. Não foi preciso pensar, apareceu-me logo uma imagem.

"- Antes de começares, quero dizer-te uma coisa, Frederico. Sinto o teu amor mais do que qualquer outra coisa neste mundo. Mais do que o meu corpo doente a querer vencer o que me possa estar reservado. Não te vou julgar nem me irás magoar com nada. Sou te eternamente grata por me teres proporcionado uma vida cheia de alegrias. Podes ser livre nas tuas palavras, meu amor."

  A tal imagem, a Amália, sentou-se ao nosso lado. Foi há muito tempo atrás, ainda nem era casado, quando a vi pela primeira vez. Estava numa rua a caminhar em pleno dia, quando uma mulher, como tantas outras, passou por mim. As minhas pernas tremeram, e o meu coração tombou. Senti-me ridículo, pois nunca tinha acreditado que fosse possível nenhuma espécie de sentimento à primeira vista. Sem saber como, nem porquê, segui a. Vi a entrar num prédio e a dirigir-se a uma sala. Entrei sem pensar. Estavam lá muitas pessoas e de repente a mulher dirigiu-se ao centro. Percebi que ia discursar e fiquei ali especado. Começou a falar sobre técnicas de escrita e passado um tempo apercebi-me que estava a dar uma aula de escrita criativa. Nunca na vida tinha frequentado nada semelhante, estava num território absolutamente desconhecido.
Durante essa hora, o meu mundo parou. Nada mais me vinha ao pensamento senão aquela mulher misteriosa. Estava preso às suas palavras,  gestos e movimentos. Tinha uma energia estrondosa e a sua sensualidade furava-me corpo. Reparei que olhava muito para mim e por isso tentava mostrar-me muito compenetrado. Porém, não conseguia disfarçar o meu encantamento. Nunca na vida me senti tão ligado ao momento presente como naquela hora. Foi absolutamente incrível.
 Quando a rapariga acabou de falar, voei para casa totalmente atordoado e estive assim durante esse mês. Sabia o nome dela porque no meio de todo daquele êxtase alguém o atirou para o ar e caiu no meu colo: Amália. Era mais nova do que eu uns anos, devia ter ai uns vinte e poucos. A minha mulher não se apercebeu desta mudança porque aparentemente estava tudo igual, mas a sensação de não a esquecer dava cabo de mim.
 Então, depois desse período, decidi voltar aquele local para ver se me conseguia libertar desta sensação. Ainda tive esperança de não a encontrar, mas quando entrei na mesma sala, lá estava ela.
 E assim foi, durante 2 meses frequentei o curso de escrita criativa sem nunca escrever uma linha sequer. O mais estranho é que a Amália nunca me perguntou absolutamente nada durante as aulas. Acho que no fundo sempre teve a certeza que o meu interesse era somente nela. Estava de cabeça perdida, só me apetecia abraça-la e pôr em prática todos os meus desejos, e então prometi a mim mesmo que precisava de fazer alguma coisa para arrumar este assunto de vez.
 Certa tarde, decidi que daquele dia não passava. Depois da aula, toda a gente abandonou a sala menos eu. Fingi que estava a arrumar as coisas e aconteceu uma coisa inesperada: a Amália aproximou-se. Sentou-se em cima da minha mesa e não disse uma única palavra. Ficámos muito tempo a olhar fixamente um para o outro, tempo suficiente para me passarem um turbilhão  de coisas pelo corpo e cabeça. Foi então que falou comigo pela primeira vez:

"- Recorda-te de mim."

Fiquei sem reação." Recorda-te de mim"? O quereria dizer com aquilo?Nunca a tinha visto na vida, senão não me teria esquecido com a maior das certezas! A minha respiração estava ofegante. Mesmo sem me conseguir mover sentia-me numa dança descontrolada em torno do universo. Voltou a repetir a mesma frase vezes sem conta, sempre a olhar para dentro dos meus olhos como se fosse lá ficar. Não consegui dizer nada. Nunca tinha sentido nem vivido nada com tamanho impacto. De repente, o medo instalou-se em mim e recuei. À medida em que me fui afastando a Amália começou a dançar lentamente ao som da nossa respiração. Não desviámos os olhos um do outro durante muito, muito tempo.

" Lembras-te? Recorda-te de mim"- Disse num tom suave repleta de lágrimas

 Despedi-me sem dizer uma palavra e com a certeza que nunca mais voltaria aquele sítio.
  O que se passou atormentou-me durante meses sem fim. Amava a minha mulher e sabia que não deveria desistir de tudo o que conquistara, mas aquele encontro destruiu-me e ao mesmo tempo elevo-me duma tal maneira que sentia o mundo mais aberto do que nunca. Sempre fora um homem com os pés bem assentes na terra até conhecer a Amália. Perguntava-me a cada minuto que passava como é que um encontro com tão poucas palavras poderia ter tido tanta importância na minha vida. Estaria louco ou com alguma carência emocional brutal? Não conseguia chegar a nenhum caminho possível, por isso percebi que precisava de ajuda. Dessa forma fui ter com uma amiga psicóloga, a Joana. Contei-lhe tudo com um sentimento de culpa gigantesco. Ela sorriu e disse-me:

"- Tem calma. Não tens de carregar toda essa culpa. Pensa nessa rapariga e tenta falar com ela em pensamento. Pergunta-lhe quem é e o que quer de ti! Não tenhas medo."

Perguntar-lhe o que quer de mim? Mas estaria eu a falar com uma espécie de vidente ou com uma psicóloga? A incerteza era tanta que não questionei e lá segui o seu conselho. 
 Durante dias e dias fiz o que me indicou, mas sem qualquer resultado. Procurava a rapariga nas ruas, cafés, bares, teatros, basicamente em todos os recantos da terra, mas não tinha qualquer resultado, além de não a ver, ainda ficava com umas dores de cabeça terríveis. Só queria que aquele pesadelo terminasse. 
Durante 3 meses não tive qualquer sinal, mas certo dia apareceu-me na minha mente mais bonita do que nunca. Estava numa praia deserta com um longo vestido de seda alaranjado a cantar baixinho.

"- Quem és tu? Diz-me, por favor. Quem és tu e o que queres de mim?"- Perguntei num choro compulsivo

Sorriu em meia lua e disse-me:

"-Eu sou tu. Fica atento e escuta-me dentro de ti. Sou tu"

Foi a primeira e única vez que veio ao meu encontro. Continuei a procurá-la com todas as minhas forças, fui a todas as praias do país ver se desse modo vinha até mim, mas esse dia nunca chegou.
 Durante muito tempo tive a Amália presente em mim, mas lá acabei por pôr de parte esta figura misteriosa e construir a minha vida sem a ter todos os dias a corroer-me o pensamento. Isto dito assim parece fácil, mas só eu sei o tempo que demorou e o que me custou. Ainda hoje não consigo perceber o que esta figura me quis mostrar. Nunca mais a vi.
Não sei o que me passou pela cabeça mas nesse dia no hospital acabei por contar isto tudo que vos descrevi à minha mulher que não me disse uma só palavra, deu-me a mão e adormeceu.
 Passado 1 ano, o médico disse-nos que não havia nada a fazer, que o cancro se tinha alastrado e que era uma questão de tempo, muito pouco tempo, até a minha mulher partir.

Numa tarde muito amarela e castanha, já em nossa casa, a Madalena disse-me com a voz cansada mas serena:

"-  Meu querido, olha para o fundo do quarto. Vês aquele papel de jornal preso à ventoinha? Parece um pássaro com a asa presa... Quando partir não quero que fiques como aquela folha de papel. Vivemos tanto... Vimos tantas coisas bonitas... Estou em paz com a minha vida e agradeço a Deus e à Natureza por te terem posto no meu caminho. Quando partir quero que sejas forte e que vivas com a tua intensidade. Deixa-te levar, não há tempo para se ser infeliz. "

(Continua...ver blogue)