domingo, 27 de abril de 2014

Louva-a-Deus

" Quem vos diz que não tento? Faço um esforço para aceitar, mas é inútil. É um horror ver os nossos amigos desaparecerem sem deixar rasto, um autêntico pesadelo. Pior ainda é assistir à decadência física do meu marido. Sempre soube que a velhice era terrível, mas afinal supera tudo o que temia. Não há nada pior do que envelhecer. Nada."

A minha avó Camila partilhava connosco a sua dor enquanto engolia a sopa de rompante como se aquela revolta pudesse ir embora envolta no líquido verde. Porém, eu lia bem no seu rosto uma réstia de esperança que aquele episódio se evaporasse e voltasse tudo a ser como antigamente. É uma mulher com um feitio particular: teimosa e imatura, mas com uma grande força e sensibilidade que nem todos conseguem compreender. Sempre nos entendemos muito bem e soubemos cuidar do lado mais especial uma da outra.

" Mãe, agora o mais importante é não dramatizar. O que o pai tem não é nada de grave e pode ter a certeza que sente essa sua revolta e ainda fica pior. Tem de aceitar que a vossa vida já não é a mesma, estão mais velhos, é a lei da vida."- dizia delicadamente a minha mãe ao mesmo tempo que olhava para mim fixamente como se devesse reforçar o seu pensamento.

"Sempre fomos os melhores amigos e além disso tivemos uma vida íntima maravilhosa. Agora...- fez uma longa pausa como se estivesse a viver em cima da mesa algum momento que deixou para trás - é tudo diferente."

Nesse instante veio-me à cabeça algumas imagens do documentário que vira umas horas antes sobre o canibalismo dos louva-a-Deus. Fiquei abismada ao saber que durante o acasalamento a fêmea devora a cabeça do macho e este, mesmo decapitado, consegue introduzir o esperma dentro da assassina, aliás, até mais rapidamente do que se estivesse intacto. Bem que a minha mente me podia poupar destas imagens durante o jantar...

" Sabem o que mais me custa?  Não aguento que se sinta diminuído, incapaz. É um homem tão culto... de longe a pessoa mais inteligente que conheço. Porque é que o seu corpo já não tem a capacidade de acompanhar o seu espírito lúcido e sagaz?"- insistia a minha avó em tom de monólogo.

A conversa foi subitamente interrompida com a chegada do meu querido avô e do meu irmão.Tinham estado a assistir a um jogo da sua equipa e a alegria era evidente, nem valia a pena perguntar quem ganhara.

"Avô, chegámos mesmo a tempo. Este polvo que está mesmo a olhar para nós! - cantarolava o meu irmão Rodrigo.

Sem darmos conta estávamos os dois em cima do meu avô a ajudá-lo a sentar-se.

"Não se preocupem, meus amores, deixem-me tentar sozinho. Sempre foram o nosso orgulho... O orgulho da vossa mãe...Os anjinhos do céu, como ela vos chama."

"E  tu o meu grande orgulho e o da tua mãe"- afirmou a minha avó com muita convicção.

" Nunca me hei de esquecer do que a minha mãe me disse um dia - contou o meu avô comovido - Pegou-me na mão com muito cuidado e sussurrou-me ao ouvido: serás sempre o meu menino pequenino, nunca te esqueças disso."

"E o avô também será sempre o meu pequenino..." disse enquanto continha as lágrimas.

A verdade é que nos últimos tempos não consigo estar ao pé do meu avô sem o encher de beijinhos, festinhas nas mãos, nas orelhas, na cara.

"Lembram-se do dia que foram para a vossa casinha nova e saíram daqui os dois a chorar agarrados ao corrimão?"

"Claro que sim avô, como se fosse ontem.  Como é possível já terem passado 8 anos?"- perguntou o meu irmão.

"Foi muito bom terem tido onde ficar quando mais precisavam."

"Nós sabemos avô, nunca nos iremos esquecer do que fizeram e fazem por nós."

Todas as emoções estavam sentadas à mesa como se fossem anfitriãs. Os meros corpos vestidos deixaram de estar presentes para dar lugar à energia de cada um . A ternura e fragilidade coberta de força do meu avô, a revolta da minha avó recheada de esperança, a tristeza camuflada que por vezes fere o meu irmão, a dignidade e beleza da minha mãe e a minha vida em duplicado espalharam-se no espaço e engoliram o brilho da lua cheia que nos seguia pela janela.

No final do jantar perguntei baixinho à minha avó:

"- Avó, viu a carta que lhe enviei?"

"- Sim, querida, vi sim. Escrevi-te um segredo para te dar quando te fores embora."

Eu e a minha avó sempre tivemos o hábito desde que me lembro, de escrever uma para a outra e como resposta entregamos um bilhetinho que intitulámos de "segredo". Temos uma regra: só podemos ler longe uma da outra.

Quando cheguei a casa, já na cama, desembrulhei cuidadosamente o papelinho amarelado já rasgado nos cantos.


" É estranho,misterioso o que escreveste.

Tem um silêncio interior que o embeleza e o torna maior.

Parece que tens sempre algo dentro de ti (além da menina que tens mesmo dentro de ti agora).

Refiro-me a uma presença espiritual que guardas e que nem sempre dás conta.

Mesmo quando essa presença está ausente.

Beijinho               

 Avó "



Não conseguia adormecer a pensar nestas palavras. Senti-me cheia de um novo significado, além da nova vida que me ocupa totalmente, senti uma outra que não sei explicar.
Fechei os olhos e fui parar às profundezas do oceano. No meio de um cenário que tinha tanto de pacífico como de mortal, avistei a minha avó a flutuar no meio de medusas, só que agora ocupava o corpo de um louva-a-Deus. Vi a pegar delicadamente no meu avô, mas em vez de lhe arrancar a cabeça foram-se unindo lenta e profundamente num bonito compasso de espera até formarem um ponto só.