sábado, 11 de outubro de 2014

Tia Ceição




Tia Ceição...

"Tita das urtigas", era como me chamava... Foi o meu caráter destemido em criança que originou esta alcunha.
Mal chegava a casa da minha tia desatava numa correria desenfreada a furar o vasto campo de urtigas que intimidava as restantes flores do jardim. Os seus netos, meus primos, ficavam assustadíssimos com medo que nunca mais voltasse, mas regressava sempre intacta com um sorriso de orelha a orelha.

"- Uau! A Francisca volta das urtigas sem um único aranhão...Como é que ela faz aquilo?"- perguntavam os meninos boquiabertos.

"- A nossa querida Francisquinha é uma rosa no meio das urtigas e por isso consegue fazer magia - dizia a minha tia com um sorriso terno.


Tia Ceição...
  
Lembro-me de ir com ela ao espetáculo de ballet das minhas primas mais velhas. Devia ter uns 4 ou uns 5 anos, mas recordo-me deste dia como se fosse ontem.
A Joana vestia a pele da gata encarnada livre e aventureira. A Rita, por sua vez, encarnava a gatinha angelical cor de pó de talco.
Dezenas de felinas coloridas saltavam e rodopiavam nesta alegre história de natal e eu sonhava ser uma delas. Naquele palco estavam reunidos todos os meus sonhos e eu via os passar por mim sem conseguir lá entrar.
Esta desconsolo saltava do meu olhar e as palavras da minha tia vieram abraçar-me:

" - Francisquinha, hoje não és uma gata como as tuas primas, mas és algo muito mais especial..."- sussurrou com uma voz misteriosa.

"- Sou? O que sou?- perguntei pasmada. O que poderia ser mais espetacular do que aquelas gatinhas que pareciam serpentinas?!

"- Hoje és tu e apenas tu!"- afirmou com convicção.

"- hannn?"- exclamei sem perceber nada.

"- Shiuuuu...um dia explico-te...agora vamos voltar para o palco."

Deu-me a mão e de repente senti-me a dançar com todas aquelas gatinhas, mas sem nenhum disfarce. Sim, era eu, Francisca, no meio dos salpicos coloridos e senti-me bem.


Tia Ceição

18/08/2014


Silêncio

A brisa refrescante da madrugada apertou-me a memória e levou-me para um lugar que desconheço, mas onde me vejo inteira.

Silêncio

Engoli a notícia de rompante.
O sabor deste dia não encaixava com um acontecimento tão trágico.

Silêncio

A morte prematura sentou-se connosco á mesa. Uma amiga da família morreu afogada no mar de Tavira. O marido ainda tentou salvá-la, mas o mar roubou-a para sempre.

Silêncio

O meu avô chegou e percebeu logo que alguma coisa não estava bem. 

Silêncio

Vi nos seus olhos o impacto brutal da dor que vai sempre de encontro ao mesmo ponto. A morte fora de horas do seu amor mais pequeno.

Silêncio

A suas palavras foram: "Morte por afogamento... e está a Ceição a nadar em seco."


Tia Ceição

1928-2014

Na capela mortuária contemplo o espaço que guarda o seu corpo. Dou a mão à minha tia, sua filha, e assim permanecemos em silêncio. A dor marca bem o seu rosto, mas o cheiro a flor de laranjeira suaviza-lhe a alma dizendo-lhe ao ouvido que sua mãe finalmente é livre. Olha-me num misto de serenidade e desespero e entrega-me as palavras de Santo Agostinho:


"A morte não é nada.
Eu somente passei
para o outro lado do Caminho.

Eu sou eu, vocês são vocês.
O que eu era para vocês,
eu continuarei sendo.

Me dêem o nome
que vocês sempre me deram,
falem comigo
como vocês sempre fizeram.

Vocês continuam vivendo
no mundo das criaturas,
eu estou vivendo
no mundo do Criador.

Não utilizem um tom solene
ou triste, continuem a rir
daquilo que nos fazia rir juntos.

Rezem, sorriam, pensem em mim.
Rezem por mim.

Que meu nome seja pronunciado
como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo.
Sem nenhum traço de sombra
ou tristeza.

A vida significa tudo
o que ela sempre significou,
o fio não foi cortado.
Porque eu estaria fora
de seus pensamentos,
agora que estou apenas fora
de suas vistas?

Eu não estou longe,
apenas estou
do outro lado do Caminho...

Você que aí ficou, siga em frente,
a vida continua, linda e bela
como sempre foi."

Santo Agostinho


Tia Ceição

Imagino que neste momento esteja num lugar mais sereno e tranquilo do que no seu corpo que já tinha desistido deste lugar.  A certeza que tenho é que levou dentro de si uma vida com muito amor. 
Neste momento imagino-a à janela, como era costume, e entrego-lhe as palavras que gostava de lhe ter dito :" A vida é um campo de urtigas onde a única Rosa é o amor" (Victor Hugo) 

Francisca