segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

J.




 Os sinais que certa noite se despediram do seu braço voltaram hoje para respirar a minha memória.

Um beijinho carregado de amor até onde quer que esteja.




terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Espero Por Ti No Sítio Do Costume



 Esta altura do natal dá-me uma nostalgia mole, preguiçosa mesmo. Absorvo tudo com uma passividade melancólica.
 Em tempos foi, sem dúvida, a melhor altura para toda a família. Lembro-me como se fosse hoje da mesa impecavelmente bem-posta, das decorações alegres e cintilantes espalhadas por toda a casa e jardim. Nunca me hei-de esquecer do enorme pinheiro que fazíamos todos juntos com as bolachinhas de gengibre e canela, bolas douradas, fitinhas encarnadas e, claro, a enorme estrela no topo. Esta espelhava a união e a esperança que a vida fosse a nossa fiel companheira. Ainda tenho bem presente o barulho estrondoso dos cânticos natalícios vindo dos altifalantes do jornal do meu pai que este insistia de espalhar pelo jardim. Por incrível que pareça a vizinhança já nem se importava com toda  aquela algazarra.
  Mesmo depois da mãe e do pai partirem, demos continuade à tradição desta época festiva, mas com a morte da Júlia o natal perdeu a sua essência. É um tormento continuar com esta celebração sem a sua presença e já lá vão 11 anos de sofrimento.
 Nesta noite todas as pessoas me irritam e perturbam imensamente, porém já se habituaram a ignorar este facto. Tenho de confessar que nem me esforço para ser civilizada. Implico com tudo, com a toalha que não é suficientemente requintada, com o vestido da neta mais velha que é demasiado curto, com os sorrisos estridentes dos mais pequenos, com as velas que deveriam ser brancas em vez de cremes, com o peru que não está bem trinchado, entre mil pormenores sem sentido. Enfim, coisas que nunca tiveram a menor importância transformaram-se em espinhos entupidos nas minhas entranhas. Já nada neste cenário me comove, até o presépio deixou de ser verdade.
 Depois de libertar esta fúria toda a gente da sala fica sem rosto e permaneço agarrada às imagens preciosas da minha filha mais pequena, desde o dia que a senti pela primeira vez dentro do meu ventre à pavorosa notícia da sua morte. Mergulho nos seus doces olhos azuis e quando dou por mim já estou na cama a ter, mais uma vez, uma noite em branco.
 Este ano decidi dar um novo rumo a esta quadra e passarei a noite sozinha. Na altura de sair de casa digo ao  Benjamin que vou buscar a tia Helena, prima do Joaquim, e que já nos encontramos dentro de instantes. Depois, só para não deixar ninguém preocupado, ligo com a notícia de que apanhei uma intoxicação alimentar, e que, evidentemente, estou incapaz de ir onde quer que seja. Depois afundo-me em pensamentos e fico a fazer o que me der na real gana. Até talvez escreva um romance. Já não o faço há tanto tempo... Estou mais perra do que sei lá o quê. E pensar que fui professora de escrita criativa... Sim, numa altura em que as palavras eram como estrelas cadentes. Agora, com tudo o que vi e vivi, reduzem-se a meros traços insípidos.
 Será que o Benjamim se importará? Nunca passámos o natal afastados desde que nos casámos. Bom, já nem isso importa. Tenho a certeza que ficará bem, aliás, talvez prefira estar sem a minha companhia. Sei que se retrai e que chega mesmo a ficar envergonhado quando entro neste círculo de mau humor. Os anos, tal como as palavras, foram ganhando uma sujidade camuflada. Éramos totalmente viciados e vidrados no corpo e mente um do outro. Loucos e estonteados de paixão. Agora é diferente. Construímos uma grande amizade, mas estragámo-nos com pequenas coisas do dia a dia, sobretudo com o silêncio de assuntos pendentes e com o sofrimento, muitas vezes escondido, que fomos armazenando debaixo da nossa pele.
 Estamos velhos, com muita pena. Farto-me de avisar as minhas netas para aproveitarem cada segundo da sua juventude. Como queria ser nova outra vez... Apesar de tudo, há uma coisa que ninguém me pode roubar: a memória. No dia em que a perder ou que ficar tresloucada, prefiro caminhar de braços abertos para a morte. É sinal que estou pronta. Quer dizer, senti-me imediatamente preparada para abandonar esta jornada desde o dia que Júlia adoeceu, mas sei que não sou ninguém para pôr um fim a algo que me transcende.

 Lembro-me de ser feliz durante tanto tempo... A minha mãe achava que chorava demasiado... Nunca entendeu o meu lado emotivo. Dizia que por detrás desta alegria que todos invejavam e do meu bonito sorriso rasgado, carregava no peito muito sofrimento. Uma dor tremenda que, inclusivamente, não me pertencia por inteiro. As minhas lágrimas sempre foram uma entrega a algo que desconhecia e me fascinava. Até isso perdi.
 Agora restam-me memórias. Memórias que ninguém mais tem direito nem acesso. Ainda hoje me alimento de histórias que não sei se fizeram sentido, mas que foram bonitas talvez por isso mesmo. Nunca fui de deixar nada a meio, porém certas coisas escaparam-me das mãos como se tentasse agarrar água. Se foi melhor ou pior assim? Foi o que foi.
 Aquele sonho de sombras persegue-me até hoje. Lembro-me de tudo. Tive-o na minha mão fechada, mas só isso. Só?  É suficiente para o reviver agora passado 50 e tal anos.
 Vi-o uma manhã que fui com o Benjamin a Santa Maria. Reconheci-o de imediato mesmo passado tanto tempo. Percorreu a sala de espera com um passo apressado e não cruzámos o olhar. Já me questionara inúmeras vezes qual seria a profissão daquele homem misterioso com o olhar mais sonhador que vi até hoje e para meu enorme espanto tive a resposta: médico. Tenho a certeza que não me viu.
 O início da nossa história ficou gravado desde o primeiro dia que o vi entrar na minha aula de escrita. Nunca descobri o que me despertou no corpo e no subconsciente, que me levou a escrever um texto tão marcante.
 Durante meses pensei entregar-lhe este segredo, mas precisava de me sentir suficientemente segura para dar esse passo. Esse dia nunca chegou, mas também não se foi embora de mim:                    

                                                     
                                                        " Espera por mim no sítio do costume,
                                                           Onde cheira a madressilva e madrugada,
                                                           A bola do luar é bolo ao lume
                                                           Em refeição por ti sempre adiada.

                                                           Eu sei não ter lugar à tua mesa
                                                           Pois por ti não serei convidada,
                                                           Mas serve-me um sonho à sobremesa
                                                           Eu fico eternamente ali sentada.
                                         
                                                           Cantar de mal dizer se tu sorrires
                                                           Do que te escrevo, amor, de enxurrada.
                                                           Nas cores que nos deixou o Arco-Íris
                                                           Há tinta de água, amor, evaporada.

                                                           Os pedaços de gelo são cardume
                                                           À superfície do lago tão gelado
                                                           Espera por mim no sítio do costume
                                                           Onde nos temos nós desencontrado.
                                                         
                                                            Eu sou um diamante na vidraça
                                                            Rasgo o vidro de leve na janela,
                                                            Se fico cá fora o sonho passa
                                                            Carregado de mel e de canela.
                                             
                                                            Pudesse eu ao de leve afirmá-lo
                                                            Que meus dedos t´aconchegam n´ almofada,
                                                            (Eu entro pela porta do cavalo
                                                             E teus sonhos, assim, não dão por nada...).
                                                       
                                                            É tempo de vindimas e castanhas,
                                                            A isto o Outono se resume,
                                                            E nem que tu não queiras e nem venhas
                                                            Espero por ti no sítio do costume! "
                                                            
                                                          
 Talvez hoje o procure naquela rua que um dia desci tão alegremente. Não sei sequer se já morreu. Não interessa. Esperarei à mesma no sítio do costume onde nos temos desencontrado. Pode ser que regresse para lhe repetir "-  Lembras-te? Recorda-te de mim." e que me enfrente em vez de fugir amedrontado. Talvez consiga explicar-lhe que esta frase pertence à essência do poema que escrevi depois do nosso primeiro "encontro".
 Posso ficar sozinha na noite escura e fria, com a chuva a cortar-me o rosto, já não tenho medo que me façam mal. Sinto-me segura com a minha imaginação, aliás, mais acompanhada do que com a minha família unida que só me espelha a saudade do que nunca mais terei: o meu único amor de verdade.
 Não me interessa vê-lo nem tê-lo nos meus braços. Darei o nosso nome aquela rua e esconderei este desabafo debaixo de uma pedra da calçada ou dentro de um carvalho. Escreverei este poema no meu corpo velho e frágil com tinta-da-china e ficarei nua à espera que a neve imortalize as minhas memórias.
Mesmo que não venha nem encontre esta carta, percorrerei pé ante pé os carris do comboio em busca dum caminho incerto que só a mim me cabe alcançar.



 Amália



(Poema "Cantar De Bem Dizer" de Henrique Segurado Pavão)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

domingo, 8 de dezembro de 2013

As Minhas Teias




No canto mais recôndito do quarto,
Esse ainda inexistente,
Sopro as plumas apagadas
Até à rua que percorri apaixonadamente.
 
Rodeio o escuro,
Preciso de ficar sozinha,
Esmago-te no chão duro 
Mas sais a correr pela ventoinha.

A letra que contorna a minha boca
Oculta gemidos desordenados
Transporta ainda uns olhos de felino
Que me penetram descontrolados.

Apontam para um feijão,
Tremo levemente,
Volto costas e assino sem pensar
O ponto mais íntimo da minha mente.

Permaneço dormente durante segundos
Para depois me esconder nas asas de um falcão,
Mas a melodia morde-me e enrola-me aos fios
Como que uma aparição.

Embaracei as teias de aranha,
Que nos seduzem em forma de cristal,
Tomo o vinho das suas veias
E quebro o ponto final.

Quero entrar nestas linhas
Que nos comovem de um modo tão seguro...
Mas as lágrimas quebradas rasgam-nas
Ao som das badaladas do futuro.

 



















Noite


Goodnight Moon


domingo, 1 de dezembro de 2013

Douro

Meu amor, devolve-me este bonito dia. "Amo-te mais do que apenas mais um dia".