segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

J.




 Os sinais que certa noite se despediram do seu braço voltaram hoje para respirar a minha memória.

Um beijinho carregado de amor até onde quer que esteja.




terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Espero Por Ti No Sítio Do Costume



 Esta altura do natal dá-me uma nostalgia mole, preguiçosa mesmo. Absorvo tudo com uma passividade melancólica.
 Em tempos foi, sem dúvida, a melhor altura para toda a família. Lembro-me como se fosse hoje da mesa impecavelmente bem-posta, das decorações alegres e cintilantes espalhadas por toda a casa e jardim. Nunca me hei-de esquecer do enorme pinheiro que fazíamos todos juntos com as bolachinhas de gengibre e canela, bolas douradas, fitinhas encarnadas e, claro, a enorme estrela no topo. Esta espelhava a união e a esperança que a vida fosse a nossa fiel companheira. Ainda tenho bem presente o barulho estrondoso dos cânticos natalícios vindo dos altifalantes do jornal do meu pai que este insistia de espalhar pelo jardim. Por incrível que pareça a vizinhança já nem se importava com toda  aquela algazarra.
  Mesmo depois da mãe e do pai partirem, demos continuade à tradição desta época festiva, mas com a morte da Júlia o natal perdeu a sua essência. É um tormento continuar com esta celebração sem a sua presença e já lá vão 11 anos de sofrimento.
 Nesta noite todas as pessoas me irritam e perturbam imensamente, porém já se habituaram a ignorar este facto. Tenho de confessar que nem me esforço para ser civilizada. Implico com tudo, com a toalha que não é suficientemente requintada, com o vestido da neta mais velha que é demasiado curto, com os sorrisos estridentes dos mais pequenos, com as velas que deveriam ser brancas em vez de cremes, com o peru que não está bem trinchado, entre mil pormenores sem sentido. Enfim, coisas que nunca tiveram a menor importância transformaram-se em espinhos entupidos nas minhas entranhas. Já nada neste cenário me comove, até o presépio deixou de ser verdade.
 Depois de libertar esta fúria toda a gente da sala fica sem rosto e permaneço agarrada às imagens preciosas da minha filha mais pequena, desde o dia que a senti pela primeira vez dentro do meu ventre à pavorosa notícia da sua morte. Mergulho nos seus doces olhos azuis e quando dou por mim já estou na cama a ter, mais uma vez, uma noite em branco.
 Este ano decidi dar um novo rumo a esta quadra e passarei a noite sozinha. Na altura de sair de casa digo ao  Benjamin que vou buscar a tia Helena, prima do Joaquim, e que já nos encontramos dentro de instantes. Depois, só para não deixar ninguém preocupado, ligo com a notícia de que apanhei uma intoxicação alimentar, e que, evidentemente, estou incapaz de ir onde quer que seja. Depois afundo-me em pensamentos e fico a fazer o que me der na real gana. Até talvez escreva um romance. Já não o faço há tanto tempo... Estou mais perra do que sei lá o quê. E pensar que fui professora de escrita criativa... Sim, numa altura em que as palavras eram como estrelas cadentes. Agora, com tudo o que vi e vivi, reduzem-se a meros traços insípidos.
 Será que o Benjamim se importará? Nunca passámos o natal afastados desde que nos casámos. Bom, já nem isso importa. Tenho a certeza que ficará bem, aliás, talvez prefira estar sem a minha companhia. Sei que se retrai e que chega mesmo a ficar envergonhado quando entro neste círculo de mau humor. Os anos, tal como as palavras, foram ganhando uma sujidade camuflada. Éramos totalmente viciados e vidrados no corpo e mente um do outro. Loucos e estonteados de paixão. Agora é diferente. Construímos uma grande amizade, mas estragámo-nos com pequenas coisas do dia a dia, sobretudo com o silêncio de assuntos pendentes e com o sofrimento, muitas vezes escondido, que fomos armazenando debaixo da nossa pele.
 Estamos velhos, com muita pena. Farto-me de avisar as minhas netas para aproveitarem cada segundo da sua juventude. Como queria ser nova outra vez... Apesar de tudo, há uma coisa que ninguém me pode roubar: a memória. No dia em que a perder ou que ficar tresloucada, prefiro caminhar de braços abertos para a morte. É sinal que estou pronta. Quer dizer, senti-me imediatamente preparada para abandonar esta jornada desde o dia que Júlia adoeceu, mas sei que não sou ninguém para pôr um fim a algo que me transcende.

 Lembro-me de ser feliz durante tanto tempo... A minha mãe achava que chorava demasiado... Nunca entendeu o meu lado emotivo. Dizia que por detrás desta alegria que todos invejavam e do meu bonito sorriso rasgado, carregava no peito muito sofrimento. Uma dor tremenda que, inclusivamente, não me pertencia por inteiro. As minhas lágrimas sempre foram uma entrega a algo que desconhecia e me fascinava. Até isso perdi.
 Agora restam-me memórias. Memórias que ninguém mais tem direito nem acesso. Ainda hoje me alimento de histórias que não sei se fizeram sentido, mas que foram bonitas talvez por isso mesmo. Nunca fui de deixar nada a meio, porém certas coisas escaparam-me das mãos como se tentasse agarrar água. Se foi melhor ou pior assim? Foi o que foi.
 Aquele sonho de sombras persegue-me até hoje. Lembro-me de tudo. Tive-o na minha mão fechada, mas só isso. Só?  É suficiente para o reviver agora passado 50 e tal anos.
 Vi-o uma manhã que fui com o Benjamin a Santa Maria. Reconheci-o de imediato mesmo passado tanto tempo. Percorreu a sala de espera com um passo apressado e não cruzámos o olhar. Já me questionara inúmeras vezes qual seria a profissão daquele homem misterioso com o olhar mais sonhador que vi até hoje e para meu enorme espanto tive a resposta: médico. Tenho a certeza que não me viu.
 O início da nossa história ficou gravado desde o primeiro dia que o vi entrar na minha aula de escrita. Nunca descobri o que me despertou no corpo e no subconsciente, que me levou a escrever um texto tão marcante.
 Durante meses pensei entregar-lhe este segredo, mas precisava de me sentir suficientemente segura para dar esse passo. Esse dia nunca chegou, mas também não se foi embora de mim:                    

                                                     
                                                        " Espera por mim no sítio do costume,
                                                           Onde cheira a madressilva e madrugada,
                                                           A bola do luar é bolo ao lume
                                                           Em refeição por ti sempre adiada.

                                                           Eu sei não ter lugar à tua mesa
                                                           Pois por ti não serei convidada,
                                                           Mas serve-me um sonho à sobremesa
                                                           Eu fico eternamente ali sentada.
                                         
                                                           Cantar de mal dizer se tu sorrires
                                                           Do que te escrevo, amor, de enxurrada.
                                                           Nas cores que nos deixou o Arco-Íris
                                                           Há tinta de água, amor, evaporada.

                                                           Os pedaços de gelo são cardume
                                                           À superfície do lago tão gelado
                                                           Espera por mim no sítio do costume
                                                           Onde nos temos nós desencontrado.
                                                         
                                                            Eu sou um diamante na vidraça
                                                            Rasgo o vidro de leve na janela,
                                                            Se fico cá fora o sonho passa
                                                            Carregado de mel e de canela.
                                             
                                                            Pudesse eu ao de leve afirmá-lo
                                                            Que meus dedos t´aconchegam n´ almofada,
                                                            (Eu entro pela porta do cavalo
                                                             E teus sonhos, assim, não dão por nada...).
                                                       
                                                            É tempo de vindimas e castanhas,
                                                            A isto o Outono se resume,
                                                            E nem que tu não queiras e nem venhas
                                                            Espero por ti no sítio do costume! "
                                                            
                                                          
 Talvez hoje o procure naquela rua que um dia desci tão alegremente. Não sei sequer se já morreu. Não interessa. Esperarei à mesma no sítio do costume onde nos temos desencontrado. Pode ser que regresse para lhe repetir "-  Lembras-te? Recorda-te de mim." e que me enfrente em vez de fugir amedrontado. Talvez consiga explicar-lhe que esta frase pertence à essência do poema que escrevi depois do nosso primeiro "encontro".
 Posso ficar sozinha na noite escura e fria, com a chuva a cortar-me o rosto, já não tenho medo que me façam mal. Sinto-me segura com a minha imaginação, aliás, mais acompanhada do que com a minha família unida que só me espelha a saudade do que nunca mais terei: o meu único amor de verdade.
 Não me interessa vê-lo nem tê-lo nos meus braços. Darei o nosso nome aquela rua e esconderei este desabafo debaixo de uma pedra da calçada ou dentro de um carvalho. Escreverei este poema no meu corpo velho e frágil com tinta-da-china e ficarei nua à espera que a neve imortalize as minhas memórias.
Mesmo que não venha nem encontre esta carta, percorrerei pé ante pé os carris do comboio em busca dum caminho incerto que só a mim me cabe alcançar.



 Amália



(Poema "Cantar De Bem Dizer" de Henrique Segurado Pavão)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

domingo, 8 de dezembro de 2013

As Minhas Teias




No canto mais recôndito do quarto,
Esse ainda inexistente,
Sopro as plumas apagadas
Até à rua que percorri apaixonadamente.
 
Rodeio o escuro,
Preciso de ficar sozinha,
Esmago-te no chão duro 
Mas sais a correr pela ventoinha.

A letra que contorna a minha boca
Oculta gemidos desordenados
Transporta ainda uns olhos de felino
Que me penetram descontrolados.

Apontam para um feijão,
Tremo levemente,
Volto costas e assino sem pensar
O ponto mais íntimo da minha mente.

Permaneço dormente durante segundos
Para depois me esconder nas asas de um falcão,
Mas a melodia morde-me e enrola-me aos fios
Como que uma aparição.

Embaracei as teias de aranha,
Que nos seduzem em forma de cristal,
Tomo o vinho das suas veias
E quebro o ponto final.

Quero entrar nestas linhas
Que nos comovem de um modo tão seguro...
Mas as lágrimas quebradas rasgam-nas
Ao som das badaladas do futuro.

 



















Noite


Goodnight Moon


domingo, 1 de dezembro de 2013

Douro

Meu amor, devolve-me este bonito dia. "Amo-te mais do que apenas mais um dia".

sábado, 23 de novembro de 2013

Sirius


 Soaram as badaladas da meia-noite no exato momento em que a chave encaixou no gatilho. Só lá estava o Punhal deitado na cama a devorar o silêncio das quatro paredes. Como tinham tido uma forte discussão há poucas horas, entrou na gruta meia apreensiva e assim permaneceu durante muito tempo sem fazer qualquer ruído.
 Enquanto via e ouvia as maiores atrocidades foi transportada para a madrugada de raios cortantes onde se despediu da sua pele. Aí também escutara inúmeros insultos e até ameaças elaboradas, mas mesmo assim teve a capacidade de se elevar e esmurrar o próprio destino. Porém, naquele momento isso foi impossível. Olhava para aquela expressão violenta e num ato de desespero pediu ao vento para rodopiar no espaço. Queria enrolar-se na enorme cama e transformar o ser cheio de medo num rouxinol. Abraça-lo profundamente no seu universo de criança e dizer-lhe que nunca mais iria engolir nenhum inseticida porque não estava sozinho. 
 Fechou os olhos com tanta força que as rugas lhe devoraram o rosto e o útero se desfez. O medo enterrou-se no seu corpo e, pela primeira vez, foi sugada pelo próprio chão.
 Quando apareceram as restantes estrelas do céu envolveram-na suavemente e adormeceram ao seu lado formando um só ponto. A noite não desceu, pois a lua petrificou, refletindo no lago sombrio a possível morte do triângulo do diamante.
De manhã cedo, o sol bateu palmas porque Sirius as arrancou daquele pesadelo. Nunca mais lá voltaram a descansar e o Punhal sem estas acabou por derreter, transformando-se num escorpião inofensivo que tenta sorrir para esconder a sua solidão e arrependimento.
Passado 13 anos, essa noite finalmente se dissolveu naquela bonita tarde tão fria. Levou-as antes para o terraço florido, onde a mestre recuperou o seu esplendor de mulher, enquanto as restantes experientam a alegria da liberdade e a esperança vestida de branco.


quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Querido Novembro




Querido Novembro,
Que entraste em mim de rajada,
Onde guardaste o Outubro
Nesta noite tão rasgada?

O mais velho costumava
Enfeitar-me com pétalas e marfim
Mas no céu rebentou a revolta
E o mar arruinou-se em mim.

Trocou-me as voltas, 
Rasgou-me o vestido,
Partiu as portas,
Cuspiu o Cupido.

 Junho foi o seu Judas Salvador
Envenenou o meu ego
E a ira transformou-se em amor.

O Agosto sorridente
Espelhou uma andorinha
Guardou no bolso uma semente
E nasceu uma adivinha.

Doce Novembro,
Despede-te baixinho
Abraça-me em sonhos
Traça-me no teu caminho.

Querido Novembro,
Que me levaste até à lua
As estrelas estonteantes
 Trincam as nuvens
E a noite beija-me nua.








sábado, 9 de novembro de 2013


quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Teias de aranha




                           

domingo, 18 de agosto de 2013

Meia-Noite (1)

Caro leitor,

 Não sei se é o termo mais indicado para me dirigir a si. Talvez "Querido leitor" ou "Pessoa a quem vou abrir o meu coração", seria, a meu ver, o mais apropriado. Ao longo do tempo, aprendi a pôr de parte certas formalidades, já tive as que me bastassem nesta vida, por isso deixo isso ao seu critério.
 Tenho de ser totalmente verdadeiro com quem tem a enorme disponibilidade interior para ouvir um desconhecido, portanto, aqui vai: nunca escrevi nada sobre mim em 80 anos de existência. É verdade, nem num simples diário, quanto mais para uma revista. Confesso que estou um pouco atrapalhado, por isso peço desculpa se não me expressar como manda o protocolo.
 Começo por dizer algumas coisas a meu respeito. O meu nome é Frederico e a minha cor preferida é o preto. Sou animado e muito persistente. Sempre fui viciado em fazer longas caminhadas/corridas, em jogar e ver futebol. Hoje em dia, com a minha idade, já é mais complicado, mas continuo a fazer os meus passeios matinais e a assistir religiosamente aos jogos da minha equipa e aos que me interessam. Apesar de ser um homem dos números tenho uma imaginação muito fértil: gosto de ouvir conversas de desconhecidos e ir para casa  magicar o final da história e de escrever palavras de amor com línguas de gato. Vou contar-vos algumas das minhas manias: tenho um hábito desde que me lembro de existir: quando estou aflito para ir à casa de banho, baixo as cuecas ainda no corredor. Não gosto nada do barulho da areia seca quando faz aquele ruído fininho, nem de lavar o espremedor de laranjas. Desde pequeno que odeio a sensação de dormir com alguém sem lhe tocar na pele, ou seja, de me enfiar no lençol debaixo e da outra pessoa ficar no de cima. Adiante, adoro comer. Sou viciado em queijo e ice tea e não passo sem os meus 2 cafés por dia. Odeio feijão verde. Quando era criança queria ser carteiro.  No meu mundo imaginário não havia profissão mais emocionante. Ainda me lembro da minha mãe me perguntar: 

"- Meu querido, diz-me uma coisa, porque queres tanto ser carteiro?"
"- Mãezinha, vou revelar-te o motivo deste sonho, mas não podes contar a ninguém! Jura, jura sem figas! Quero muito ler às escondidas as centenas de cartas que me irão parar às mãos para depois poder juntar os apaixonados que não se veem há anos ou mesmo os que não sabem que vão fazer parte da vida um do outro. Também vou ajudar muitos velhinhos que não têm dinheiro a pagar as contas, denunciar os bandidos malvados e dar boas notícias a quem mais precisa. E depois, sabes o que vai acontecer mãe, sabes? Com todas estas aventuras vou escrever o livro mais incrível à face do planeta e tornar-me-ei o menino/ homem carteiro mais feliz do mundo." 
 Lembro-me como se fosse hoje do seu sorriso nesse dia. Tenho muitas saudades da minha mãe. Muitas.
Apesar deste sonho de criança, a tradição de família foi soberana e vestiu-me com uma bata branca. Acabei por me tornar num cardiologista conceituado.
  Em relação a amores... Nunca fui mulherengo, aliás, não tenho a menor pachorra para aturar os dramas existenciais e forçados da esmagadora maioria das mulheres (querida pessoa do sexo feminino que está a ler atenciosamente as minhas palavras, não me tome de ponta, estou a ser verdadeiro). Apaixonei-me pela minha mulher, Madalena, o grande amor da minha vida, depois de uma longa amizade. Realizei o seu sonho de adolescente, embora já tivéssemos 30 e dois anos: casar às escondidas numa igreja pequenina no Alentejo, e as testemunhas foram o padeiro e a costureira da aldeia.Tivemos dois filhos maravilhosos, o Jeremias e a Alice, os nossos grandes amores.
 Não me vou alongar muito mais nas descrições porque não quero correr o risco das minhas palavras serem atiradas para um caixote sem ter dito o principal motivo desta carta.  
 No dia em que soube que a minha mulher tinha um cancro fulminante no intestino, o meu mundo desabou. Porém, sempre me mantive crente de que tudo iria correr bem. Durante muito tempo alimentei o meu coração e o juízo com este pensamento. Não faltei a um único tratamento de quimioterapia, fiz questão de ser o seu único companheiro durante todo o tratamento. Sempre que entrávamos no carro dizia-me:

"- Meu amor, vai tudo correr bem. Estamos juntos e isso para mim é tudo." 
 Durante o tratamento, pedia-me para lhe contar histórias. Gostava de me ouvir falar da nossa vida, dos momentos em família, dos tempos da faculdade e dos meus disparates em criança. Mas houve um dia, já na reta final do tratamento, que me pediu uma coisa diferente:

"- Querido, gosto tanto das tuas histórias, sabes que são o que me dão mais alegria. Mas hoje vou pedir-te algo diferente. Conta-me alguma coisa da tua vida que desconheça. Um segredo teu que nunca me tenhas contado ou qualquer coisa que me possa ter escapado."

Fiquei sem palavras. Sempre fui um homem sincero. Permaneci em silêncio. Não foi preciso pensar, apareceu-me logo uma imagem.

"- Antes de começares, quero dizer-te uma coisa, Frederico. Sinto o teu amor mais do que qualquer outra coisa neste mundo. Mais do que o meu corpo doente a querer vencer o que me possa estar reservado. Não te vou julgar nem me irás magoar com nada. Sou te eternamente grata por me teres proporcionado uma vida cheia de alegrias. Podes ser livre nas tuas palavras, meu amor."

  A tal imagem, a Amália, sentou-se ao nosso lado. Foi há muito tempo atrás, ainda nem era casado, quando a vi pela primeira vez. Estava numa rua a caminhar em pleno dia, quando uma mulher, como tantas outras, passou por mim. As minhas pernas tremeram, e o meu coração tombou. Senti-me ridículo, pois nunca tinha acreditado que fosse possível nenhuma espécie de sentimento à primeira vista. Sem saber como, nem porquê, segui a. Vi a entrar num prédio e a dirigir-se a uma sala. Entrei sem pensar. Estavam lá muitas pessoas e de repente a mulher dirigiu-se ao centro. Percebi que ia discursar e fiquei ali especado. Começou a falar sobre técnicas de escrita e passado um tempo apercebi-me que estava a dar uma aula de escrita criativa. Nunca na vida tinha frequentado nada semelhante, estava num território absolutamente desconhecido.
Durante essa hora, o meu mundo parou. Nada mais me vinha ao pensamento senão aquela mulher misteriosa. Estava preso às suas palavras,  gestos e movimentos. Tinha uma energia estrondosa e a sua sensualidade furava-me corpo. Reparei que olhava muito para mim e por isso tentava mostrar-me muito compenetrado. Porém, não conseguia disfarçar o meu encantamento. Nunca na vida me senti tão ligado ao momento presente como naquela hora. Foi absolutamente incrível.
 Quando a rapariga acabou de falar, voei para casa totalmente atordoado e estive assim durante esse mês. Sabia o nome dela porque no meio de todo daquele êxtase alguém o atirou para o ar e caiu no meu colo: Amália. Era mais nova do que eu uns anos, devia ter ai uns vinte e poucos. A minha mulher não se apercebeu desta mudança porque aparentemente estava tudo igual, mas a sensação de não a esquecer dava cabo de mim.
 Então, depois desse período, decidi voltar aquele local para ver se me conseguia libertar desta sensação. Ainda tive esperança de não a encontrar, mas quando entrei na mesma sala, lá estava ela.
 E assim foi, durante 2 meses frequentei o curso de escrita criativa sem nunca escrever uma linha sequer. O mais estranho é que a Amália nunca me perguntou absolutamente nada durante as aulas. Acho que no fundo sempre teve a certeza que o meu interesse era somente nela. Estava de cabeça perdida, só me apetecia abraça-la e pôr em prática todos os meus desejos, e então prometi a mim mesmo que precisava de fazer alguma coisa para arrumar este assunto de vez.
 Certa tarde, decidi que daquele dia não passava. Depois da aula, toda a gente abandonou a sala menos eu. Fingi que estava a arrumar as coisas e aconteceu uma coisa inesperada: a Amália aproximou-se. Sentou-se em cima da minha mesa e não disse uma única palavra. Ficámos muito tempo a olhar fixamente um para o outro, tempo suficiente para me passarem um turbilhão  de coisas pelo corpo e cabeça. Foi então que falou comigo pela primeira vez:

"- Recorda-te de mim."

Fiquei sem reação." Recorda-te de mim"? O quereria dizer com aquilo?Nunca a tinha visto na vida, senão não me teria esquecido com a maior das certezas! A minha respiração estava ofegante. Mesmo sem me conseguir mover sentia-me numa dança descontrolada em torno do universo. Voltou a repetir a mesma frase vezes sem conta, sempre a olhar para dentro dos meus olhos como se fosse lá ficar. Não consegui dizer nada. Nunca tinha sentido nem vivido nada com tamanho impacto. De repente, o medo instalou-se em mim e recuei. À medida em que me fui afastando a Amália começou a dançar lentamente ao som da nossa respiração. Não desviámos os olhos um do outro durante muito, muito tempo.

" Lembras-te? Recorda-te de mim"- Disse num tom suave repleta de lágrimas

 Despedi-me sem dizer uma palavra e com a certeza que nunca mais voltaria aquele sítio.
  O que se passou atormentou-me durante meses sem fim. Amava a minha mulher e sabia que não deveria desistir de tudo o que conquistara, mas aquele encontro destruiu-me e ao mesmo tempo elevo-me duma tal maneira que sentia o mundo mais aberto do que nunca. Sempre fora um homem com os pés bem assentes na terra até conhecer a Amália. Perguntava-me a cada minuto que passava como é que um encontro com tão poucas palavras poderia ter tido tanta importância na minha vida. Estaria louco ou com alguma carência emocional brutal? Não conseguia chegar a nenhum caminho possível, por isso percebi que precisava de ajuda. Dessa forma fui ter com uma amiga psicóloga, a Joana. Contei-lhe tudo com um sentimento de culpa gigantesco. Ela sorriu e disse-me:

"- Tem calma. Não tens de carregar toda essa culpa. Pensa nessa rapariga e tenta falar com ela em pensamento. Pergunta-lhe quem é e o que quer de ti! Não tenhas medo."

Perguntar-lhe o que quer de mim? Mas estaria eu a falar com uma espécie de vidente ou com uma psicóloga? A incerteza era tanta que não questionei e lá segui o seu conselho. 
 Durante dias e dias fiz o que me indicou, mas sem qualquer resultado. Procurava a rapariga nas ruas, cafés, bares, teatros, basicamente em todos os recantos da terra, mas não tinha qualquer resultado, além de não a ver, ainda ficava com umas dores de cabeça terríveis. Só queria que aquele pesadelo terminasse. 
Durante 3 meses não tive qualquer sinal, mas certo dia apareceu-me na minha mente mais bonita do que nunca. Estava numa praia deserta com um longo vestido de seda alaranjado a cantar baixinho.

"- Quem és tu? Diz-me, por favor. Quem és tu e o que queres de mim?"- Perguntei num choro compulsivo

Sorriu em meia lua e disse-me:

"-Eu sou tu. Fica atento e escuta-me dentro de ti. Sou tu"

Foi a primeira e única vez que veio ao meu encontro. Continuei a procurá-la com todas as minhas forças, fui a todas as praias do país ver se desse modo vinha até mim, mas esse dia nunca chegou.
 Durante muito tempo tive a Amália presente em mim, mas lá acabei por pôr de parte esta figura misteriosa e construir a minha vida sem a ter todos os dias a corroer-me o pensamento. Isto dito assim parece fácil, mas só eu sei o tempo que demorou e o que me custou. Ainda hoje não consigo perceber o que esta figura me quis mostrar. Nunca mais a vi.
Não sei o que me passou pela cabeça mas nesse dia no hospital acabei por contar isto tudo que vos descrevi à minha mulher que não me disse uma só palavra, deu-me a mão e adormeceu.
 Passado 1 ano, o médico disse-nos que não havia nada a fazer, que o cancro se tinha alastrado e que era uma questão de tempo, muito pouco tempo, até a minha mulher partir.

Numa tarde muito amarela e castanha, já em nossa casa, a Madalena disse-me com a voz cansada mas serena:

"-  Meu querido, olha para o fundo do quarto. Vês aquele papel de jornal preso à ventoinha? Parece um pássaro com a asa presa... Quando partir não quero que fiques como aquela folha de papel. Vivemos tanto... Vimos tantas coisas bonitas... Estou em paz com a minha vida e agradeço a Deus e à Natureza por te terem posto no meu caminho. Quando partir quero que sejas forte e que vivas com a tua intensidade. Deixa-te levar, não há tempo para se ser infeliz. "

(Continua...ver blogue)

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Para onde vai?



Que cor terá a tristeza
Quando não dorme?
Que língua falará a dor
Quando se torna disforme?

Palavras ruídas atiradas para um caixão
Ruídos divinos que me escaparam da mão

Palavras que adormeceram ao meu colo
Sons que engoli
Flutuam agora no mar vermelho
Em direção a rios que perdi

quinta-feira, 2 de maio de 2013