quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

                                                       

                                                         " Espera por mim no sítio do costume,
                                                           Onde cheira a madressilva e madrugada,
                                                           A bola do luar é bolo ao lume
                                                           Em refeição por ti sempre adiada.

                                                           Eu sei não ter lugar à tua mesa
                                                           Pois por ti não serei convidada,
                                                           Mas serve-me um sonho à sobremesa
                                                           Eu fico eternamente ali sentada.
                                         
                                                           Cantar de mal dizer se tu sorrires
                                                           Do que te escrevo, amor, de enxurrada.
                                                           Nas cores que nos deixou o Arco-Íris
                                                           Há tinta de água, amor, evaporada.

                                                           Os pedaços de gelo são cardume
                                                           À superfície do lago tão gelado
                                                           Espera por mim no sítio do costume
                                                           Onde nos temos nós desencontrado.
                                                         
                                                            Eu sou um diamante na vidraça
                                                            Rasgo o vidro de leve na janela,
                                                            Se fico cá fora o sonho passa
                                                            Carregado de mel e de canela.
                                             
                                                            Pudesse eu ao de leve afirmá-lo
                                                            Que meus dedos t´aconchegam n´ almofada,
                                                            (Eu entro pela porta do cavalo
                                                             E teus sonhos, assim, não dão por nada...).
                                                       
                                                            É tempo de vindimas e castanhas,
                                                            A isto o Outono se resume,
                                                            E nem que tu não queiras e nem venhas
                                                            Espero por ti no sítio do costume! "
                                                            

sábado, 11 de outubro de 2014

Tia Ceição




Tia Ceição...

"Tita das urtigas", era como me chamava... Foi o meu caráter destemido em criança que originou esta alcunha.
Mal chegava a casa da minha tia desatava numa correria desenfreada a furar o vasto campo de urtigas que intimidava as restantes flores do jardim. Os seus netos, meus primos, ficavam assustadíssimos com medo que nunca mais voltasse, mas regressava sempre intacta com um sorriso de orelha a orelha.

"- Uau! A Francisca volta das urtigas sem um único aranhão...Como é que ela faz aquilo?"- perguntavam os meninos boquiabertos.

"- A nossa querida Francisquinha é uma rosa no meio das urtigas e por isso consegue fazer magia - dizia a minha tia com um sorriso terno.


Tia Ceição...
  
Lembro-me de ir com ela ao espetáculo de ballet das minhas primas mais velhas. Devia ter uns 4 ou uns 5 anos, mas recordo-me deste dia como se fosse ontem.
A Joana vestia a pele da gata encarnada livre e aventureira. A Rita, por sua vez, encarnava a gatinha angelical cor de pó de talco.
Dezenas de felinas coloridas saltavam e rodopiavam nesta alegre história de natal e eu sonhava ser uma delas. Naquele palco estavam reunidos todos os meus sonhos e eu via os passar por mim sem conseguir lá entrar.
Esta desconsolo saltava do meu olhar e as palavras da minha tia vieram abraçar-me:

" - Francisquinha, hoje não és uma gata como as tuas primas, mas és algo muito mais especial..."- sussurrou com uma voz misteriosa.

"- Sou? O que sou?- perguntei pasmada. O que poderia ser mais espetacular do que aquelas gatinhas que pareciam serpentinas?!

"- Hoje és tu e apenas tu!"- afirmou com convicção.

"- hannn?"- exclamei sem perceber nada.

"- Shiuuuu...um dia explico-te...agora vamos voltar para o palco."

Deu-me a mão e de repente senti-me a dançar com todas aquelas gatinhas, mas sem nenhum disfarce. Sim, era eu, Francisca, no meio dos salpicos coloridos e senti-me bem.


Tia Ceição

18/08/2014


Silêncio

A brisa refrescante da madrugada apertou-me a memória e levou-me para um lugar que desconheço, mas onde me vejo inteira.

Silêncio

Engoli a notícia de rompante.
O sabor deste dia não encaixava com um acontecimento tão trágico.

Silêncio

A morte prematura sentou-se connosco á mesa. Uma amiga da família morreu afogada no mar de Tavira. O marido ainda tentou salvá-la, mas o mar roubou-a para sempre.

Silêncio

O meu avô chegou e percebeu logo que alguma coisa não estava bem. 

Silêncio

Vi nos seus olhos o impacto brutal da dor que vai sempre de encontro ao mesmo ponto. A morte fora de horas do seu amor mais pequeno.

Silêncio

A suas palavras foram: "Morte por afogamento... e está a Ceição a nadar em seco."


Tia Ceição

1928-2014

Na capela mortuária contemplo o espaço que guarda o seu corpo. Dou a mão à minha tia, sua filha, e assim permanecemos em silêncio. A dor marca bem o seu rosto, mas o cheiro a flor de laranjeira suaviza-lhe a alma dizendo-lhe ao ouvido que sua mãe finalmente é livre. Olha-me num misto de serenidade e desespero e entrega-me as palavras de Santo Agostinho:


"A morte não é nada.
Eu somente passei
para o outro lado do Caminho.

Eu sou eu, vocês são vocês.
O que eu era para vocês,
eu continuarei sendo.

Me dêem o nome
que vocês sempre me deram,
falem comigo
como vocês sempre fizeram.

Vocês continuam vivendo
no mundo das criaturas,
eu estou vivendo
no mundo do Criador.

Não utilizem um tom solene
ou triste, continuem a rir
daquilo que nos fazia rir juntos.

Rezem, sorriam, pensem em mim.
Rezem por mim.

Que meu nome seja pronunciado
como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo.
Sem nenhum traço de sombra
ou tristeza.

A vida significa tudo
o que ela sempre significou,
o fio não foi cortado.
Porque eu estaria fora
de seus pensamentos,
agora que estou apenas fora
de suas vistas?

Eu não estou longe,
apenas estou
do outro lado do Caminho...

Você que aí ficou, siga em frente,
a vida continua, linda e bela
como sempre foi."

Santo Agostinho


Tia Ceição

Imagino que neste momento esteja num lugar mais sereno e tranquilo do que no seu corpo que já tinha desistido deste lugar.  A certeza que tenho é que levou dentro de si uma vida com muito amor. 
Neste momento imagino-a à janela, como era costume, e entrego-lhe as palavras que gostava de lhe ter dito :" A vida é um campo de urtigas onde a única Rosa é o amor" (Victor Hugo) 

Francisca





sábado, 20 de setembro de 2014

"Mas quem sente muito cala
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala
Fica só inteiramente."

Fernando Pessoa

sexta-feira, 4 de julho de 2014



                                                                Tudo diferente

sábado, 21 de junho de 2014



És o tempo aos soluços
Feito de frações erradas
Deixas marcas de argila
Em penas apagadas.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Beijo de Fogo



Beijo de Fogo


Quando estou ao teu sabor
Fica a paisagem sem gente
Abre o Mundo um corredor
Vou ao sabor da corrente...

Não me sinto dominado
Pois que és o meu domínio,
Sou Espécie de desterrado,
Nalgum Astro de alumínio.

Por ordem d´algum convénio
Muda meu lugar no Espaço
Sou balão de oxigénio
Que em ternura me desfaço...

A serrilha dos teus dentes
Nos meus lábios são arado
Rasgando o solo às sementes
Que não se dão noutro lado!

Dão sumos desconhecidos,
Tão doces e transparentes,
Se temos lábios unidos
Só eu sinto o que tu sentes.

Átomos somos somente?
Oxalá que assim seja:
Fruto proibido dá gente
Quando a gente se deseja

Quando fazemos amor
A nudez é nossa roupa:
Quando estou ao teu sabor
Tenho o teu sabor na boca!


Henrique Segurado Pavão,
Lisboa,24 de Junho de 2008









sexta-feira, 13 de junho de 2014

Eye in eye


Deram as mãos e a noite passou por eles a galope. Não trocaram uma única palavra, não precisavam. O luar trazia-lhes todas as memórias, letras e sons que ficaram suspensos no tempo, mas que sempre souberam que só a eles pertencia.
  O sol abriu e foi nesse momento que a verdade saiu à rua. Então, finalmente, a rapariga sussurrou-lhe ao ouvido com toda a convicção:

"- Cheguei."

domingo, 18 de maio de 2014

O maior amor do mundo

domingo, 27 de abril de 2014

Louva-a-Deus

" Quem vos diz que não tento? Faço um esforço para aceitar, mas é inútil. É um horror ver os nossos amigos desaparecerem sem deixar rasto, um autêntico pesadelo. Pior ainda é assistir à decadência física do meu marido. Sempre soube que a velhice era terrível, mas afinal supera tudo o que temia. Não há nada pior do que envelhecer. Nada."

A minha avó Camila partilhava connosco a sua dor enquanto engolia a sopa de rompante como se aquela revolta pudesse ir embora envolta no líquido verde. Porém, eu lia bem no seu rosto uma réstia de esperança que aquele episódio se evaporasse e voltasse tudo a ser como antigamente. É uma mulher com um feitio particular: teimosa e imatura, mas com uma grande força e sensibilidade que nem todos conseguem compreender. Sempre nos entendemos muito bem e soubemos cuidar do lado mais especial uma da outra.

" Mãe, agora o mais importante é não dramatizar. O que o pai tem não é nada de grave e pode ter a certeza que sente essa sua revolta e ainda fica pior. Tem de aceitar que a vossa vida já não é a mesma, estão mais velhos, é a lei da vida."- dizia delicadamente a minha mãe ao mesmo tempo que olhava para mim fixamente como se devesse reforçar o seu pensamento.

"Sempre fomos os melhores amigos e além disso tivemos uma vida íntima maravilhosa. Agora...- fez uma longa pausa como se estivesse a viver em cima da mesa algum momento que deixou para trás - é tudo diferente."

Nesse instante veio-me à cabeça algumas imagens do documentário que vira umas horas antes sobre o canibalismo dos louva-a-Deus. Fiquei abismada ao saber que durante o acasalamento a fêmea devora a cabeça do macho e este, mesmo decapitado, consegue introduzir o esperma dentro da assassina, aliás, até mais rapidamente do que se estivesse intacto. Bem que a minha mente me podia poupar destas imagens durante o jantar...

" Sabem o que mais me custa?  Não aguento que se sinta diminuído, incapaz. É um homem tão culto... de longe a pessoa mais inteligente que conheço. Porque é que o seu corpo já não tem a capacidade de acompanhar o seu espírito lúcido e sagaz?"- insistia a minha avó em tom de monólogo.

A conversa foi subitamente interrompida com a chegada do meu querido avô e do meu irmão.Tinham estado a assistir a um jogo da sua equipa e a alegria era evidente, nem valia a pena perguntar quem ganhara.

"Avô, chegámos mesmo a tempo. Este polvo que está mesmo a olhar para nós! - cantarolava o meu irmão Rodrigo.

Sem darmos conta estávamos os dois em cima do meu avô a ajudá-lo a sentar-se.

"Não se preocupem, meus amores, deixem-me tentar sozinho. Sempre foram o nosso orgulho... O orgulho da vossa mãe...Os anjinhos do céu, como ela vos chama."

"E  tu o meu grande orgulho e o da tua mãe"- afirmou a minha avó com muita convicção.

" Nunca me hei de esquecer do que a minha mãe me disse um dia - contou o meu avô comovido - Pegou-me na mão com muito cuidado e sussurrou-me ao ouvido: serás sempre o meu menino pequenino, nunca te esqueças disso."

"E o avô também será sempre o meu pequenino..." disse enquanto continha as lágrimas.

A verdade é que nos últimos tempos não consigo estar ao pé do meu avô sem o encher de beijinhos, festinhas nas mãos, nas orelhas, na cara.

"Lembram-se do dia que foram para a vossa casinha nova e saíram daqui os dois a chorar agarrados ao corrimão?"

"Claro que sim avô, como se fosse ontem.  Como é possível já terem passado 8 anos?"- perguntou o meu irmão.

"Foi muito bom terem tido onde ficar quando mais precisavam."

"Nós sabemos avô, nunca nos iremos esquecer do que fizeram e fazem por nós."

Todas as emoções estavam sentadas à mesa como se fossem anfitriãs. Os meros corpos vestidos deixaram de estar presentes para dar lugar à energia de cada um . A ternura e fragilidade coberta de força do meu avô, a revolta da minha avó recheada de esperança, a tristeza camuflada que por vezes fere o meu irmão, a dignidade e beleza da minha mãe e a minha vida em duplicado espalharam-se no espaço e engoliram o brilho da lua cheia que nos seguia pela janela.

No final do jantar perguntei baixinho à minha avó:

"- Avó, viu a carta que lhe enviei?"

"- Sim, querida, vi sim. Escrevi-te um segredo para te dar quando te fores embora."

Eu e a minha avó sempre tivemos o hábito desde que me lembro, de escrever uma para a outra e como resposta entregamos um bilhetinho que intitulámos de "segredo". Temos uma regra: só podemos ler longe uma da outra.

Quando cheguei a casa, já na cama, desembrulhei cuidadosamente o papelinho amarelado já rasgado nos cantos.


" É estranho,misterioso o que escreveste.

Tem um silêncio interior que o embeleza e o torna maior.

Parece que tens sempre algo dentro de ti (além da menina que tens mesmo dentro de ti agora).

Refiro-me a uma presença espiritual que guardas e que nem sempre dás conta.

Mesmo quando essa presença está ausente.

Beijinho               

 Avó "



Não conseguia adormecer a pensar nestas palavras. Senti-me cheia de um novo significado, além da nova vida que me ocupa totalmente, senti uma outra que não sei explicar.
Fechei os olhos e fui parar às profundezas do oceano. No meio de um cenário que tinha tanto de pacífico como de mortal, avistei a minha avó a flutuar no meio de medusas, só que agora ocupava o corpo de um louva-a-Deus. Vi a pegar delicadamente no meu avô, mas em vez de lhe arrancar a cabeça foram-se unindo lenta e profundamente num bonito compasso de espera até formarem um ponto só.












sábado, 1 de fevereiro de 2014

Faz Hoje 2 Anos

Não estava à espera, confesso. Posso afirmar convictamente que nunca mais a queria ver nem ouvir, mas acabou por regressar.
 Quando olhei para a enorme fogueira reparei que as cinzas já não habitavam mais nas folhas de eucalipto, e lá estava ela com o seu jeito de criança perdida. O vestido branco que lhe cobria os sentidos transformou-se num farrapo pré-histórico e a fita azul céu, dantes tão resplandecente, perdeu-se nos seus cabelos irreconhecíveis de tão desgrenhados que se apresentavam. Pairava no ar um cheiro a definhamento que nunca mais vou conseguir esquecer.
"- Como estás? Não sei porquê, mas sinto que algo não está bem."- balbuciou num tom nostálgico.
Não queria falar, achava que não merecia mais o meu respeito e atenção.
 Andei à roda do meu crepúsculo sem nenhuma pausa e engoli todos os cravos riscados na esperança de afastar aquela voz.
O tempo foi passando e a curiosidade estalou, mas, acima de tudo, o meu coração amoleceu.
Entreguei-me de novo à floresta sem ressentimentos e demos um longo e terno abraço. Tapei-a com um vestido que o sol consertou durante o caminho e tornou a sorrir como antigamente.
Voltámos a dançar e a brincar ao som deste tempo incerto, com a única certeza que nenhuma sombra, nem mesmo a morte, conseguirá desfazer o nosso reflexo.




 

terça-feira, 28 de janeiro de 2014


Nocte lucidus, interdiu inutilis