Numa bela manhã de Maio, a caminho do teatro onde trabalho, cruzei-me
com o rapaz cem por cento perfeito ao passar por uma pequena rua do Príncipe
Real. De repente, o meu corpo ouviu um som desconhecido e explodiu de energia
deixando-me com a pele mais arrepiada do que nunca. Mais feliz não poderia ter
ficado, pois sempre esperei por esta sensação de reconhecimento do que quer que
fosse. Há quem diga que são as almas que se reencontram...talvez possa acreditar
depois disto. Por outro lado fiquei bastante confusa, porque não me lembrava
bem como era o rapaz e, perante isto, como poderia saber que tinha estado a
quinze metros de distância do rapaz cem por cento perfeito para mim? O meu
coração tinha a certeza que era ele e isso bastava-me.
Nunca criei nenhum protótipo de homem ideal. Tenho amigas que
deliram com os louros, altivos, de nariz fininho e queixo delicado. Outras
preferem os morenos de olhos claros, encorpados, com traços carregados e mãos
grandes. Muitas apontam um foco para os galantes que as enfeitam com brincos de
diamantes e existe ainda as que acreditam apenas no amor e numa cabana.
O rapaz era novo, não tinha mais do que 20 e tal anos.
Estava vestido com uma camisola preta, calças de ganga e tinha um sinal no
nariz. Apercebi-me que estava apressado pelo seu andar em grandes passos
crescentes, como a batida de um relógio de cuco, mas mesmo com o seu andar
descontrolado parecia uma criança sonhadora. Passou ao meu lado, atravessou a
rua sem olhar e desceu em direção a oeste sem deixar qualquer rasto. Todas as
suas marcas foram levadas com a brisa daquela manhã de primavera como uma estrela
cadente que se despede suavemente do céu.
Não me recordava de nenhum traço do rapaz sem ser do
sinal. Não sabia qual era a sua cor e formato de olhos, nariz, lábios, cabelo,
mãos, tamanho e postura. Nesse preciso momento, apareceu-me uma voz masculina a
sussurrar que era o homem cem por cento perfeito para mim.
Passei por várias fases, desde ficar encantada com tais
palavras, a enervar-me com os sons repetidos, até já não aguentar mais e querer
expulsá-la de mim, mas não me abandonou.
De regresso a casa, olhei para todos os recantos da cidade
para ver se o encontrava de novo envolto na luz dourada do final do dia, porém
não tive qualquer sinal.
Não consegui jantar, nem dormir um segundo com os nervos
inquietantes que se instalaram no meu corpo.
No dia seguinte, fui para mesma rua com um vestido branco
esvoaçante na esperança de o encontrar mais uma vez e não falhei: vi o novamente
a passar de cabeça para baixo e com um passo atordoado.
E assim foi durante o mês de Maio, todos
os dias à mesma hora ficava naquele local e via o passar. Por vezes falava ao telemóvel,
outras bocejava e também cantava, mas sempre sem olhar para mim nem para
ninguém. Fazia de tudo para captar a sua atenção: levava vestidos coloridos às
flores, pintas, riscas e quadrados. Decorava-me com inúmeras flores, fitas e chapéus. Enfeitava-me com colares de penas, conchas e
bolas de todos os tamanhos. Vestia mini-saias, calções curtinhos, calças justinhas
no rabo e botas altas. Tudo isto para ver se conseguia um só olhar, mas não
tinha sucesso: às 9:45 lá passava o jovem a voar sem se desviar dos seus
pensamentos.
Certo dia, para além deste Carnaval, levei um cestinho com
sumo de laranja, línguas de gato, merendas mistas miniatura, scones com
doce de framboesa e cerejas para tomarmos o pequeno-almoço, mas não tive
coragem de o convidar. Quando o via caminhar em linha reta, um misto de medo e
adrenalina tomavam conta do meu corpo. Por um lado, apetecia-me interrompê-lo e
dizer-lhe tudo o que estava a sentir, mas por outro, achava que não fazia sentido.
No dia seguinte, levei um caderno com textos meus
para lhe dar, mas fiquei de novo presa ao chão sem reação. A vontade de
falar com ele crescia de dia para dia, mas o que é que lhe poderia dizer?
Imaginava centenas de vezes as minhas primeiras palavras:
“- Bom dia. Posso roubar-te meia hora do teu tempo para
termos uma pequena conversa?”
Péssimo. O mais certo seria pensar que estava a fazer um daqueles inquéritos de rua.Aliás, nunca me sairia uma frase desta género.
“- Desculpa, por acaso sabes dizer-me como vou para o Bairro alto?”
Igualmente terrível... O melhor mesmo era ser sincera e dizer-lhe a verdade:
“ - Olá, chamo-me Francisca. Passas-te por mim há uns dias nesta rua e soube de imediato que és o rapaz cem por cento perfeito para mim. Segui-te e vi que trabalhas na loja de cinema ao virar da esquina. Desde esse dia que te espero todas as manhãs no mesmo sítio sem conseguir dizer uma única palavra e agora que ganhei coragem, quero que faças parte da minha vida, mas não te sei explicar porquê.”
Não me teria levado minimamente a sério. Pensaria que era uma
desequilibrada que só o tinha achado atraente. Não podia ter este discurso.
Imaginava constantemente que tudo seria bem simples.
Depois de conversarmos um bocado tomávamos o pequeno-almoço no “Pão de canela”
na praça das flores. De seguida, iríamos para onde a vontade nos levasse sem
tempo nem limites. A verdade é que este processo nunca poderia ser tão rápido,
mas a vontade de o agarrar e colar a mim era avassaladora.
No final do mês, cheguei à conclusão que era
insustentável e demasiado irreal estar a alimentar esta situação. A verdade era
que o que estava a sentir condicionava tudo à minha volta, afetando claramente
a minha vida. Resolvi escrever-lhe esta carta:
Querido rapaz cem por cento perfeito,
Preciso de me encontrar contigo para saber quem és. Se
concordares, combinamos às 14.30 na esquina da loja onde trabalhas.
Um beijinho
Francisca
No dia seguinte, acordei estranhamente calma. Tinha imaginado
este momento centenas de vezes, desde a forma cuidada como iria vestida, até ao
mínimo pormenor de todo o meu discurso, mas optei por ir o mais simples
possível: Camisola branca e calças de ganga.
Às 14h25 lá estava eu no sítio combinado, impávida e
serena, como já não me sentia há muito tempo. Reparei, inclusivamente, que não
me tinha penteado, pois a parte de trás do cabelo, junto à nuca, estava ainda
com as marcas evidentes de quem se acabara de levantar e mesmo assim não me
preocupei. Vi o rapaz a passar por mim quando menos esperava e não me
movi, mas senti-me feliz, pois naquele segundo descobri que tinha conseguido
ganhar, finalmente, a coragem necessária para concretizar tudo o que tinha
ficado suspenso no ar.
Quando dei o primeiro passo com a carta na mão, aconteceu
o inesperado: De repente o rapaz olhou para mim fixamente. Nunca tinha estado com ninguém tão marcante. Era moreno e tinha
os olhos rasgados, castanhos-escuros. Parou e ficou imóvel a falar comigo em pensamento. Durante
minutos permanecemos desta maneira e deu para reparar em todos os seus sinais,
cicatrizes e expressões. O sinal do nariz era o que mais gostava nele.
Olhava para mim imóvel, mas eu conseguia vê-lo a dançar ligado à
terra com gestos profundos e uma agressividade libertadora que me rasgava a
cabeça.
Naquele momento, tenho a certeza que me estava a dizer que
era a rapariga cem por cento perfeita, mas, inesperadamente, virei costas.
Primeira vez, fiquei com dúvidas se tudo aquilo era real ou se seria antes a
invenção de uma sonhadora que precisa de colecionar emoções.
Dessa vez, fui eu que desapareci sem deixar qualquer rasto
e tenho a certeza que ficou à minha procura no meio da multidão, pois o eco da
sua voz era gritante. Porém, precisava de me recolher para perceber esta
história.
Quando atravessei a estrada, fui brutalmente atropelada
por um homem que tinha sido despedido nesse dia. A carta caiu no chão e voou
para longe.
A minha última imagem foi a do rapaz cem por cento
perfeito a entrar nos meus olhos, cheio de medo e esperança e, foi então, que
desejei alterar a ordem natural do destino e voltar aquela rua para o beijar
loucamente e fazer parte da sua cicatriz para sempre. Se o tivesse enfrentado,
talvez tivesse vivido a história da minha vida em vez de entrar sem esperança
de vida na ambulância.
Antes de perder a consciência, soube tal e qual o que lhe
poderia ter dito, contando uma história que começava com “ Era uma vez” e
acabava com “ Uma história muito triste, não achas?”
“ Era uma vez um rapaz e uma rapariga que viviam num país
distante. Eram muito diferentes, mas ambos acreditavam piamente que, algures no
mundo, existia o rapaz e rapariga cem por cento perfeitos para eles. Sim,
acreditavam num milagre. Esse milagre tornou-se realidade.
Certo dia caminhando por uma estrada encontraram-se
os dois a meio caminho.
- Incrível - disse o rapaz. A tua cara sempre esteve algures em mim .
- Podes achar estranho – disse ela - mas tenho a certeza que és o homem cem por cento perfeito para mim.
Sentaram-se os dois num banco e estiveram horas a trocar
confidências e juras de amor. Porém, uma pequena dúvida instalou-se nos seus
corações ingénuos que nunca tinham amado verdadeiramente. Era possível viver
esta história de imediato sem medos e inseguranças ou seria rápido de mais?
Vamos pôr-nos à prova - disse o rapaz - se de facto formos feitos um para o outro o destino não nos irá separar. Sugiro que cada um vá para seu lado.
Sim, quero fazer isso - respondeu ela – Sei que nos iremos cruzar novamente.
E foi assim que os dois se separaram e foi cada um para seu lado; ela partiu em direção a oriente e ele rumou a ocidente. Aquela prova, contudo, revelava-se perfeitamente inútil, aliás, nunca a deveriam ter posto em prática pois o seu encontro já tinha sido um verdadeiro milagre.
A verdade é que tiveram anos sem se ver e com o passar do
tempo chegaram à conclusão que nada daquilo tinha sido real, que talvez não
passasse de um sonho lúcido e foram apagando lentamente aquele encontro dos
seus corações.
O tempo passou a uma velocidade estonteante.
Numa bela manhã de Outubro, 20 anos depois, o rapaz caminhava
calmamente pelas ruas da cidade, vindo de oeste em direção a leste, à procura
de um café para tomar o pequeno-almoço, ao mesmo tempo que a rapariga percorria
a rua, mas no sentido de leste para oeste. Cruzaram-se a meio caminho. Por um
breve instante, os seus corações abraçaram-se de novo.
- Continuo à tua espera – Pensou a rapariga.
- Consigo ouvir-te – Confessou ele ao seu pensamento.
Contudo, a coragem de prenunciar tais palavras evaporou-se
naquele bonita manhã. Passaram ao lado um do outro sem trocar qualquer palavra
e desapareceram entre a multidão em direções opostas, para sempre.”
Uma história triste, não achas?
Sim, era o que te devia ter dito.
Adaptação do texto "Rapariga cem por cento perfeita",
de Haruki
Murakami
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